home Antologia, LITERATURA Princípio de Karenina – Afonso Cruz (Companhia Letras, 2018)

Princípio de Karenina – Afonso Cruz (Companhia Letras, 2018)

Um pai escreve uma longa carta a uma filha, em jeito de despedida, resumo de vida, pedido de desculpas. Lendo os primeiros parágrafos do Princípio de Karenina, de Afonso Cruz, percebemos que vai ser esse o tom e o “peso” da nossa leitura. Convém, por isso, fazermo-nos fortes e cerrarmos os punhos, prevenindo eventuais embates. Sentimos cedo, neste livro, o desespero contido, a mágoa imensa, e temos medo de ser contaminados.
Há várias personagens marcantes, em torno do pai que escreve. Uma delas é o seu próprio pai, de carácter fechado, hirto, autocentrado até ao limite do absurdo, conservador por receio do Outro e da sua atuação potencialmente nociva (“O estrangeiro começava logo à porta de casa”).
Na infância do narrador, encontramos qualquer coisa de arcaico, de apologia do tradicional modelo de família apoiada num paterfamilias austero, firme, em que a segurança dos velhos hábitos conforta e acalma (“À tarde, as mulheres sentavam-se no quintal a conversar e a coser e tricotar, e eram para mim uma espécie de esteio do mundo”).
Perpassa, rapidamente, para quem segue curioso na leitura, uma sensação de poder feminino, suave mas firme, quase matreiro, cortante, certeiro. Sente-se na mãe do homem que narra, no seu amor sereno por este filho que nasce – como se em premonição de uma vida também ela claudicante – com uma deformidade que lhe prejudica a marcha, lhe marca a adolescência e exterioriza a fraqueza de espírito que adiante notaremos.
A vontade de imperturbabilidade reina nesta família (“Havia um Outono a acontecer permanentemente dentro de nós”), o desejo de passar pela vida sem grande mossa, com medo das cicatrizes. Mas neste temor permanente do choque e do embate, nesta fuga às emoções que nos faz sentir que nos movemos entre personagens-estátua, farejamos o caos, a mácula, a tragédia.
O Dois Metros, personagem que acompanha o narrador desde a infância, é a primeira incoerência, a peça que não encaixa, a contaminação do amor que tudo transforma. E percebemos que era inevitável a descomposição do cenário, que era preciso sujar as mãos, misturar humanidade e loucura, deixar que as deformidades emergissem em pleno.A mulher que será o grande amor do pai que escreve é o instrumento necessário à sua humanização redentora.
A Companhia das Letras traz-nos este livro em que Afonso Cruz nos obriga a mergulhar na nossa humanidade, nos mais elementares conceitos do Bem e do Mal, na reflexão sobre a felicidade e o amor. Repescando o princípio de Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”, somos conduzidos por um narrador que tem tanto de resignado como de ingénuo, que de tanto se proteger, se fere inexoravelmente. Mas, por se ter deixado viver, fá-lo com altivez e aceita o seu destino em plenitude. “A imponência do muro que nos rodeia é diretamente proporcional ao receio que sentimos”. Este livro mexe connosco, com os nossos medos e é profunda (embora discretamente) político, porque nos fala do fechamento, do Outro, da forma como ele nos invade e nos toca, e de como esta interação é poderoso no amor, no ódio, na indiferença e na vingança.

Por defeito profissional, Joana Aroso escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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