Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
A resposta à pergunta de Pessoa no Quinto Império da Mensagem parecia ter chegado no verão passado, num serão de domingo, enquanto eu regressava num comboio de Lisboa para o Porto. Um puto chamado Eder marcava um golo pela seleção nacional portuguesa de futebol masculino, no campeonato europeu em Paris. Eu, na qualidade de ignorante em matéria desportiva em geral, e futebolística em particular, percebi que aquilo era algo inesperado, por Eder ser um jogador discreto, e por um país por quem não se dava um tostão naquele certame, estar, de repente, em condições de poder humilhar o país anfitrião na própria casa. O relato entrava-me no ouvido, um sem-fim de nomes que eu não conhecia, inclusive o Eder, mas mal aquela bola atingiu o alvo, reconheci de imediato que já não eram Moutinho, Sanches ou Quaresma quem corria vestido de verde. Tal como naquele sketch dos Monty Python sobre os filósofos gregos e alemães no campo de futebol, a Mensagem era recriada agora num jogo em que estavam convocados Afonso Henriques, todos os Sanchos, Manuel I, Álvares Cabral e mais umas quantas personagens, cumprindo o desígnio do morto em Alcácer-Quibir. O comentador grita ao meu ouvido que Camões se levanta da tumba, que depois dos descobrimentos voltamos a conquistar, que finalmente seremos grandes outra vez, que contra os canhões marcharíamos, marcharíamos. Já no Porto, ao chegar à minha rua, grita um jovem negro: “Campeões, campeões, mas quem é que marcou? Quem foi?” Supérfluo. A febre dos dias seguintes é História: se acreditarmos que in adrenalina veritas, os portugueses são portadores inequívocos do vírus do Império, que se manifesta em quaisquer eventos coletivos benzidos por bandeira e hino.
Esta excitação não é, ao contrário do que muito se diz, fenómeno exclusivo do nosso país. O Sérgio Godinho tem graça no refrão “só neste país é que se diz só neste país”, mas a realidade desmente-o. Basta ter algum contacto com pessoas comuns de vários países para saber que o discurso de auto-flagelação, naturalmente em áreas e graus diferentes, impera e resulta do modelo pouco cosmopolita em que somos educados. Isto decorre do facto de a divisão dos países em estados-nação promover um sentido concorrencial, de competição, de comparação entre eles, em que a galinha da vizinha, desconhecida, idealizada, vai sempre sair a ganhar, se nada for feito para o contrariar. Daí existir uma relação entre altos níveis de auto-flagelação e de nacionalismo. As rivalidades locais são normais e existem desde sempre, mas o seu alargamento a um nível nacional, com o que isso implica de instrumentalização de símbolos e emoções coletivas, é outra história. O século XIX e as duas guerras mundiais servem de manual para perceber este processo. O atual estado da União Europeia idem.
No entanto, é verdade que há uma especificidade portuguesa. Um checo orgulhoso na invenção nacional do açúcar em cubos não me perturba tanto quanto um português orgulhoso da via verde porque, para este último, a via verde e o astrolábio são um só. Há uma linha cronológica contínua, interminável, que dispensa o sentido competitivo em detrimento de uma auto-exaltação enquanto destino inexorável do próprio país, independentemente do decurso do mundo, em direção ao Império de Vieira. Já lá vão quarenta anos desde que Eduardo Lourenço diagnosticou o caráter hiperidentitário português, mas quase a completar duas décadas de século XXI, pouco parece ter mudado na obsessão com a suposta existência de um destino megalómano que reponha o que estava originalmente traçado.
A discussão a partir do futebol não é nova. No campeonato mundial de 2006, a Alemanha, que o organizou, discutia se era normal e desejável os alemães estarem felizes, e se as bandeiras a esvoaçar nos carros eram inócuas ou potencialmente perigosas. Artigos de jornal, reportagens inúmeras durante a Sommermärchen (conto de verão), como ficou conhecido aquele julho: podemos vestir-nos de vermelho, preto e dourado sem sentir vergonha? Perguntar isto em Portugal seria bizarro. Porque em Portugal questiona-se muito pouco. A História do Império é como uma flor ou uma pedra. Existe sem mais. Isto tem duas consequências: por um lado, o Império é evocado só para aquilo que interessa – “as façanhas incríveis”, a “primeira globalização”, “dar novos mundos ao mundo” – outorgando à nossa História uma narrativa hollywoodesca, de filme de domingo à tarde, que não faz jus à sua complexidade e peculiaridade, que urge explorar por vários ângulos, que não o de super-heróis de banda desenhada; por outro, impossibilita uma discussão lúcida, pelo ostensivo enfrentamento facebookiano que origina – os que idealizam a História versus os que a recusam –, e pela forma simplificada com que a apresenta enquanto entidade fechada, sem reflexo nos dias de hoje, desprezando a importância do tema na dimensão política e social do nosso tempo. Refiro-me à inexistência de análise ao comentador da final do Europeu ao meu ouvido, ao negro da minha rua que exaltava o herói futebolista de pele negra, ou ao Presidente da República que repete até à exaustão que somos um povo extraordinário (Alexandra Lucas Coelho, uma das poucas vozes dissonantes a este respeito na nossa imprensa, tem chamado a atenção para as frases do Presidente em vários artigos). Marcelo, reputadíssimo Professor e homem indiscutivelmente culto, demonstra que a patologia nacional não obedece a maiores ou menores graus de escolaridade e literacia, porque, La Palisse oblige, se se parte de uma entidade coletiva nacional para se referir a um “povo extraordinário”, tem de se reconhecer que há outras entidades semelhantes, outros povos, portanto, menos ou nada extraordinários. Isto na prática, como tanto se vê pelo mundo nos nossos dias, tem um nome: chauvinismo. Mas o Professor Marcelo nunca seria chauvinista. Nenhum português, aliás. Exaltamo-nos fazendo de conta que a portugalidade nunca fez mossa a ninguém, que é fofinho e enternecedor o tal retângulo ajardinado com gente boa e simpática de vinho sobre mesa. É claro que eu partilho do júbilo pela vitória no europeu de futebol ou em qualquer conquista nacional, mas não é isso que está em questão. Do que aqui falo é da patologia que, a partir de eventos desse tipo, adquire contornos psicossomáticos coletivos, a portugalidade, que não é uma característica inofensiva. Ela ofusca, distorce, tergiversa a realidade passada e presente de todos os envolvidos na História portuguesa.
Para aqueles que, como eu, estão seguros da distância entre o patriotismo e o nacionalismo, e que não alinham em vivências oníricas da nacionalidade, recomendo aqui uma leitura fundamental, que estaria pousado, no meu mundo ideal, à cabeceira de qualquer português: “A obsessão da portugalidade” (Quetzal 2017), de Onésimo Teotónio de Almeida, que, vivendo há décadas nos Estados Unidos, tem a vantagem invejável de observar Portugal de fora do nosso aquário mediático. Trata-se de um conjunto de ensaios, organizados por temas, que vão desde a identidade nacional à lusofonia, passando pela incontornável saudade. Onésimo estuda, a partir dos escritos de uma parte da intelligentsia portuguesa do século XX, essa obsessiva temática do questionamento sobre quem somos e porque somos assim. Ajudou o escritor e professor de Português para alunos americanos ter tido, ao longo da vida, dificuldade em responder a perguntas que estes colocavam sobre temas da cultura portuguesa. Num tom cómico, que lhe é conhecido, em alguns momentos até anedótico, passa por Teixeira de Pascoaes, António Quadros, António Sérgio ou José Gil, aventando criticamente quais os que apresentam leituras mais ou menos legítimas do ponto de vista metodológico e científico, sem quaisquer rodeios onde necessário: “(…) a maior prova do que Pascoaes diz está exatamente na produção da própria Filosofia Portuguesa que, na sua maioria, constitui muito pouco do que, quer no mundo anglo-saxónico quer no germânico, francês ou mesmo chinês, se considera filosofia”. A extensa bibliografia no final de cada capítulo, atesta do fundamento legítimo da análise de Onésimo ao Portugal visto pelos ilustres portugueses, que não saem bem na figura, por exemplo na proliferação ad nauseum do termo saudade, que o povo incorporou que é único, intraduzível e demais disparates:
“(…) se o significado duma palavra nos é determinado pelo uso que os falantes de uma língua dela fazem, saudade é usado em português em tão variadas situações e para denominar tão vastas e diversas realidades que essa tarefa se torna impossível. O curioso é que se cai num autêntico círculo vicioso, porque os pensadores da Filosofia Portuguesa veem nesse uso a marca distintiva da cultura e não a falta de espírito analítico ou cuidado terminológico que a tradição literária e de prosa poética portuguesa aceitou e desenvolveu sem preocupações de rigor”.
Elementar, meu caro tuga. O negrito é meu, porque ali está a chave do problema: falta de rigor, análise e comparação com o que existe fora das nossas fronteiras. Deixemo-nos, portanto, de querer suspender a rotação da Terra, para anunciar a todo o planeta quão necessários somos enquanto cultura. Foquemo-nos em espoletar o tal espírito analítico em falta, em pensar nas coisas até aqui hermeticamente encerradas na unanimidade do vetusto discurso sobre a portugalidade. Deitemos a psicopátria na cama do hospício (obrigado Reininho!). Que tal começarmos por abandonar o fardo sebastianista e reconhecer que não nos espera destino nenhum?
Texto de Luís Pimenta Lopes