Reparei que já não me dizem Quando tiveres mais idade, vais perceber, o que tem tanto de interessante como de desesperante, dependendo da pessoa leitora. Significa então que cresci e que já nada tenho a perceber ou já percebi tudo. Que desgraça é achar que já se percebeu tudo e que infortúnio é efectivamente perceber como tudo isto funciona.
A palavra amor não vem no dicionário, nem a palavra empatia se encontra numa enciclopédia. Aquilo que se encontra muito por aí e devia estar encerrada numa página é a violência, aquela com que nos (mal)tratamos, e sabemos que magoarmo-nos mutuamente é uma fatalidade. Ás vezes é tão dissimulada que a ignoramos, preferindo a trovoada seca das palavras; outras é tão prática que nos deixa sem chão. Se seccionássemos o amor, deixaríamos de sentir o coração na boca.
Perceber como isto funciona acarreta uma certa solidão. O capitalismo já não é representado pelos senhores de fato e gravata a quem queremos dar uma sova, mas pelas pessoas nas redes sociais que dizem querer construir um mundo mais amoroso e empático, abrindo a nossa mente (só consigo pensar na trepanação de Egas Moniz). Que me abram buracos na cabeça para outra coisa que não iludir-me. Numa sociedade hiperconsumista e hiperestimulada, o activismo performativo promete revestir-se de retórica de esquerda, para assim compatibilizar vivências de pessoas marginalizadas com o capitalismo,.
Pessoas cisgénero a harmonizar temáticas como a inclusão (que palavra horrível, como se não estivessem elas já incluídas) de pessoas não-binárias e trans, por exemplo, servindo um propósito lucrativo e de interesse pessoal, é uma tentativa capitalista de absorver uma comunidade que repudia a opressão.
O mundo está cheio de especialistas. Quando tiverem mais idade, vão perceber.
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Rafaela Jacinto é artista, ativista e queer desobediente do teatro e da escrita. “A música está na minha cabeça” é o seu terceiro livro, depois de “Regime” (2020) e “Fiz uma coisa má” (2021), ambos editados pela Douda Correria. Nasceu em 1994, licenciou-se em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016) e é especialista em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2019). Estudou ainda Cinema Documental e trabalhou na última década com os realizadores Joaquim Pinto e Nuno Leonel.