home Didascálias, TEATRO Qui a tué mon père (TNSJ, 7/1/2021)

Qui a tué mon père (TNSJ, 7/1/2021)

Qui a tué mon père (Quem matou o meu pai), texto escrito por Édouard Louis, publicado por cá pela Elsinore em 2020, com excelente tradução de Luísa Benvinda Álvares (que usaremos para as citações ao longo desta crítica), chegou ao palco do Teatro Nacional São João no passado dia 7 de Janeiro na sua versão original, uma raridade que tornou o espectáculo mais vívido e emocional.
Monólogo para um pai ausente (multiplicado por vários bonecos inertes distribuídos pelo palco, à medida que se sucedem as várias fases do discurso), fala da vida familiar do autor e das várias “mortes” desta figura tutelar, mesmo na ausência, num registo que projecta a (auto)biografia quase confessional para o território sociológico e político, desafiando as convenções do formato e atacando a raiz do problema de milhares de pais durante as sucessivas crises que os devastaram: o esquecimento e fim precoce a que foram votados pelo Poder, como indivíduos e como grupo social. Cedo sabemos o que esperar, com as primeiras palavras do texto original projectadas em fundo, uma definição da política como a zona cinzenta em que o público/comunitário e o privado se sobrepõem, criando atrito: “Se considerarmos a política como a governação de seres vivos por outros seres vivos, assim como a existência de indivíduos no interior de uma comunidade que eles não escolheram, então, a política é a distinção entre populações que têm a sua vida sustentada, promovida e protegida, e populações expostas à morte, à perseguição e ao assassínio.”
Stanislas Nordey encena e interpreta este exigente exercício de contenção, e durante quase duas horas segura a nossa atenção com pouco mais do que expressividade e entrega à “sua” personagem, um filho cuja identidade sexual nunca foi tolerada no seio familiar, mas recusa ser mártir e assume todos as suas verdades, erros e fraquezas. Um tom inspirador e corajoso, que abraça as suas naturais contradições e lhe confere dignidade acrescida e uma humanidade por vezes comovente, mas sempre desafiante, que força o nosso sentido crítico.
Com base apenas no seu testemunho, portanto falível porque desprovido de contraditório que o complemente ou de qualquer validação extra que uma encenação das cenas descritas pudesse conferir, o protagonista desfia memórias e especulações sobre eventos chave da sua vida e do seu pai, com repetições, obsessões e vários objectivos em mente, que refere expressamente: “Também já contei isto mas não valerá a pena repetir o mesmo quando falo da tua vida, uma vez que ninguém quer ouvir falar de vidas como a tua? Não valerá a pena repetir sempre o mesmo até nos ouvirem? (…) Não valerá a pena gritar?/Não tenho medo de me repetir, porque o que escrevo, o que digo, não obedece às exigências da literatura, mas às da necessidade e da urgência, às do fogo.”

Este direito e necessidade de evocação da memória do pai é confrontado com o inusitado e já legislado direito ao esquecimento dos titulares de cargos públicos, com a vida de milhões dependentes de si, mas cujos actos nunca fazem parte destas memórias biográficas, embora nelas influam de modo invisível e irreversível. “Porque é que nunca se dizem esses nomes numa biografia?” É contra esta contradição insanável e demasiado comum que Édouard Louis se insurge na segunda parte do texto, e com ele Nordey no espectáculo que o reproduz fielmente. O actor vem à boca de cena para nos dizer na cara ao que vem e é introduzido o elemento natural neve, com excelentes resultados estéticos e metafóricos, soterrando tudo ao seu alcance, congelando e neutralizando os corpos que toca e uniformizando-os, assim como os actos políticos e as consequências que desencadearam para tantos milhões.
“Se calhar aqueles que me vão ler ou ouvir não reconhecem os nomes (…) já os esqueceram ou nunca os ouviram, mas é exactamente por isso que quero pronunciá-los (…). Recuso-me deixar que sejam esquecidos. (…) Quero fazer com que os nomes deles entrem na História por vingança. (…) Hollande, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do teu sofrimento tem nomes. A história da tua vida é a história destas pessoas que se foram sucedendo para te abater. A história do teu corpo é a história desses nomes que se sucederam para o destruir. A história do teu corpo acusa a história política.”
Consciente dos efeitos do Poder (talvez demasiado) também sobre a memória individual e colectiva, recusa-se aceitá-los e normalizá-los. Escolhe denunciá-los a plenos pulmões, perpetuando o seu “dedo acusador” nos palcos e nas páginas que escreveu. Talvez esta escolha signifique abdicar da intemporalidade do seu testemunho, mas ao morder a realidade com indignação sem descurar o todo da obra, o vazio da morte cede por via da Arte. Não será esse o objectivo último dos que entregam o seu dom na esfera pública, para que a história e a História os julgue?
“Acabará sempre tudo por ser esquecido?” Enquanto existir Arte, a resposta é um categórico não.
Uma peça inesquecível e um excelente livro que encontram nos escaparates das livrarias independentes que tanto precisam do nosso apoio por estes dias.

Ficha Técnica

texto Édouard Louis
encenação e interpretação Stanislas Nordey
colaboração artística Claire ingrid Cottanceau
desenho de luz Stéphanie Daniel
cenografia Emmanuel Clolus
composição musical Olivier Mellano
criação sonora Grégoire Leymarie
clarinete Jon Handelsman
esculturas Anne Leray, Marie-Cécile Kolly
direção de palco Antoine Guilloux
carpinteiro-chefe Charles Ganzer
técnico de iluminação Patrick Descac
engenheiro de som Sébastien Hoerth
técnico de som Laurence Barbier
diretora de digressão Julie Salles
com a participação amigável de Wajdi Mouawad
a cenografia e os figurinos foram criados nos ateliês do Théâtre National de Strasbourg
produção Théâtre National de Strasbourg (França)
coprodução La Colline – théâtre national (França)
estreia 12Mar2019 La Colline – théâtre national (França)
dur.aprox. 2:00
M/16 anos

Foto © Jean Louis Fernandez

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