home Folhetim, LITERATURA Quintas de Leitura – Teatro do Campo Alegre, 22/11/2018

Quintas de Leitura – Teatro do Campo Alegre, 22/11/2018

As Quintas de Leitura são, hoje em dia, uma instituição e, mais do que isso, uma referência no panorama cultural do Porto – ou do país? É sempre difícil conjecturar tão longe, mas, pela sua importância, pelo conjunto de nomes que já congregaram, estes encontros transformaram-se num marco. O que nos leva à segunda constatação. Ou à segunda interrogação. É um mistério, um mistério que se acolhe com agrado, constatar o panorama de uma casa cheia, num dia de semana. Um dia de semana de borrasca torna tudo mais surpreendente. Se o milagre da multiplicação dos espectadores não se repetisse há mais de década e meia. Seja como for, num teatro que foge à concentração da Baixa, situado em zona, apesar de tudo, menos central que a dos bares que enxameiam o centro portuense – é digno de registo. Mesmo que seja para regstar o óbvio.
A sessão de 22 de Novembro, integrada no Festival Dias do Desassogego, foi subordinada ao mote “Ainda não há camas só para pesadelos”, dado por um poema de António José Forte. A poesia de Forte foi, precisamente, um dos pontos altos do programa – só não se dirá que foi um dos seus pontos fortes para evitar um jogo de palavras imperdoavelmente pueril. O facto, porém, permanece: a presença poética de Forte foi das melhores opções numa escolha, genericamente, de bons autores, mas nem sempre dos melhores dos seus poemas. E desde já se diga, para que não restem dúvidas, que a presença de José Saramago parece, no mínimo, uma concessão. É sabido quanto os versos foram um episódio na longa carreira do Nobel português. Mas como estas questões não se medem assim (estas questões não se medem), a poesia de Saramago não poderia nunca ombrear com as de Fernando Pessoa, António José Forte, Luiza Neto Jorge, Adília Lopes e José Miguel Silva – os restantes conjurados da noite. Diga-se, ainda, em modo repisado, que a selecção não foi a mais conseguida. Adília Lopes viu-se resumida a um punhado de anedotas e formas breves, demasiado breves – e, por muito que isso custe muito a não poucos, esta autora é mais e menos do que isso. Muitos dos seus poemas são mais energicamente instigantes do que aqueles que se leram no Teatro do Campo Alegre; poemas, não raro, de uma extensão e alcance mais vastos, dotados de poderes de invenção menos limitados à pequena, à pequeníssima história. Por vezes, contudo, a microscopia é de tal ordem, que é ainda menor do que amostra que nos deram naquela quinta de Novembro. José Miguel Silva teria ganho em surgir como o vário, portentoso poeta que é – um autor cuja mestria avulta tanto na sátira, quanto na lírica, na revolta como no desvelo, na exasperação, mas também no encantamento. Mesmo tendo em conta a exiguidade inevitável numa leitura escolhida, nunca esteve sequer sugerida a riqueza que há em existirem nele todas essas facetas. As escolhas de uma poeta de uma aspereza sumptuosa e ao mesmo tempo avara nos termos que não desperdição, e falamos de Luiza, foi também representada de forma um pouco apressada e, aqui e acolá, pouco imaginativa. Pessoa é Pessoa, é Pessoa, é Pessoa.
A noite arrancou com Rui Manuel Amaral, que leu um texto da sua autoria. Uma abordagem talvez mais bem comportada do que poderia esperar-se de um autor cuja irreverência e inventividade vão dos formatos que tem escolhido para a sua escrita aos autores que tem editado. A sua defesa de uma possibilidade de superação da lei da morte através da literatura, se é sedutora, podia ter sido menos sistemática e mais fragmentada. Um pouco de susto e de medo, algo de desassossego, não teria feito mal a um texto informado e culto, de grande empenho e pesquisa concentrada.

Se fosse necessário escolher o melhor da noite, curiosamente, esse melhor não recairia, nem nos autores seleccionados, nem nos poemas que deles se leram. Pese embora o facto de José Miguel Silva ser, porventura, um dos melhores cinco poetas actualmente a escrever (ou a não escrever, a fazer fé em Últimos Poemas) no nosso país, a noite salvou-se de ser uma como as outras por dois pontos no espectáculo – os dois cumes do Campo Alegre naquela quinta. Um foi a leitura de Adolfo Luxúria Canibal, que operou nada menos que três prodígios. Um deles é natural: a sua voz, aliada à presença em palco do vocalista dos Mão Morta. Esta justificaria, por si só, uma ida ao Campo Alegre sob a tempestade. Outro dos seus feitos consistiu em ter transformado a poesia de Saramago num momento empolgante. Por fim, Luxúria Canibal leu «Lisbon Revisited», não como se este fosse um dos poemas mais reconhecíveis da literatura portuguesa, mas como se ele tivesse sido escrito de propósito para a áspera desolação da sua voz de bardo cansado, de cantor do fim das noites e dos tempos. Não é mau. A leitura de Teresa Coutinho manteve-se numa linha certeira de correcção e entrega, emprestando mesmo momentos de um subtil histrionismo onde eles foram adequados. Mas prometêramos mais um ponto alto. Esse foi cénico. Antes da entrada dos convidados, Teresa Coutinho e Luxúria Canibal, houve no fundo do palco uma abertura que revelou o espaço envolvente do teatro, tornando-o assim desabrigrado perante o frio da noite, a chuva, mas, sobretudo, o inesperado de uma entrada em cena que rompeu a convenção.
Infelizmente, os momentos musicais da noite mostraram-se feridos por um nítido desnível. Se as peças pianísticas a cargo do músico (e poeta) João Paulo Esteves da Silva foram momentos dignos de registo, o mesmo não se pode dizer da prestação do cantor escolhido, Valter Lobo (acompanhado ao piano por André Lobo). Por indesmentível falta de conhecimento do reportório, bem como da habitual prestação do artista, não nos seria possível dizer se os permanentes desajustes tímbricos – e as desafinações, não menos continuadas – serão constantes da actuação do músico, ou se resultam de um tenebroso golpe de azar circunscrito àquela noite. Mas já podemos pronunciar-nos em relação à pobreza constrangedora das letras cantadas, à fragilidade das temáticas ali exploradas, e do seu desenvolvimento como texto e como expressão – de um sentimentalismo que feria os ouvidos e o bom senso.

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