É sabido que Simone Weil tem por sua principal obra estas Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social. Escrito aos 25 anos da autora (que morreria menos de uma década depois, em 1943), este trabalho apresenta-se como um estudo notavelmente denso e profundo, que desmonta os mecanismos sociais, simbólicos e filosóficos que estão na base da vida moderna. Graças ao seu poder de análise e à agudeza das suas leituras, podemos perceber nestes escritos uma intemporalidade que os torna dolorosamente actuais – «A formidável extensão do crédito impede a moeda de desempenhar o seu papel regulador no que se refere às trocas e relações entre os diversos ramos de produção» (p.116). Segundo o pensador Alain, Reflexões… faria parte desses raros trabalhos que abrem caminho ao «futuro próximo» e que preparam a «Revolução verdadeira».
O ponto de partida de Simone Weil, ainda antes de se entregar à «Crítica do Marxismo», título da primeira rubrica do livro – e, possivelmente, ponto máximo dos seus poderes analíticos – encontra-se imbuído de um profundo pessimismo, pessimismo esse que atravessa, de resto, todas as Reflexões. É certo que, nas sequências finais da obra, Weil avança determinados postulados que permitem entrever uma certa possibilidade de alcance e consecução – «a vida será tanto menos desumana quanto maior for a capacidade individual de pensar e de agir» (p.129); no entanto, a verdade é que essa poderá ser apenas uma possibilidade, um cenário hipotético. No quadro geral da análise de Weil, há um quase determinismo, e as suas palavras estão marcadas por um cepticismo de raízes profundas, que a leva a duvidar claramente de qualquer possibilidade de abolição do domínio e da tirania – «a humanidade contemporânea tende, em geral, para uma forma totalitária de organização social» (p.120). E, no entanto, o tom nunca chega a ser de derrotismo ou de anuência. Muito pelo contrário. O propósito de Simone Weil parece ter sido o de descrever para compreender, e compreender para equacionar a mudança. A própria autora o enuncia – «é já tempo de renunciar a apenas sonhar a liberdade e de decidir-se a concebê-la» (p.73). De resto, é curioso verificar que, com todo o seu pessimismo, não serão propriamente depreciativas as referências de Simone Weil ao pensamento utópico – «Descrever (…) um estado de coisas que seria melhor do que aquele que existe, é sempre construir uma utopia; nada é, no entanto, tão necessário à vida como descrições idênticas, contanto que seja a razão a ditá-las. Todo o pensamento moderno, desde a Renascença, se encontra impregnado de aspirações mais ou menos vagas a essa civilização utópica» (p.104). E ao rebater, quer o materialismo, quer o espiritualismo, a autora posiciona-se numa espécie de equidistância perfeita em relação a todo e qualquer extremo. Também ela, de certa forma, numa esfera utópica.
Este livro é tanto uma crítica do marxismo e dos marxistas – «O método materialista que Marx nos legou permanece ainda instrumento virgem; nenhum marxista verdadeiramente o utilizou, a começar pelo próprio Marx.» (p.20) –, quanto o é do capitalismo e da plutocracia – «O dinheiro não constitui um processo cómodo para a troca de produtos, é antes o escoamento das mercadorias que constitui um meio de fazer circular o dinheiro.» (p.114) Do mesmo jeito, descreve sem hesitações uma «utopia anarquista» (p.48). Análoga a esta desconfiança da autora em relação aos diferentes sistemas políticos e filosóficos que analisa, é a sua persuasão da inevitabilidade de uma falência futura da sociedade e dos mecanismos da sua regulação – «Enquanto a sociedade existir, necessariamente encerrará os indivíduos adentro dos seus rígidos limites, impondo-lhes as suas regras» (p.33). Estudando a história da relação entre o trabalhador, o labor e as entidades reguladoras (opressoras), Simone Weil afirmará mesmo: «De todas as formas de organização social que nos apresenta a história, são bem raras aquelas que se nos deparam verdadeiramente isentas de opressão» (p.42). No seguimento de tais reflexões, a pensadora detecta, em toda esta dinâmica, um «sombrio jogo de forças cegas que se unem ou entrechocam, que progridem ou declinam, que se substituem umas às outras, sem jamais cessar de esmagar sob si a desgraçada humanidade» (p.65) A lucidez de Weil, aliada à já referida actualidade das suas cogitações, conduzem-na a propor fórmulas que o nosso tempo tem tornado prementes – «Aceitamos demasiado facilmente o progresso material como um dom do céu» (p.68). O seu prognóstico, necessariamente negativo, está muito próximo daquele que várias vozes do nosso tempo têm vindo a ventilar – «As guerras acarretarão um consumo insensato de matérias-primas e de utensílios, uma louca destruição dos bens de toda a espécie que os foram legados pelas gerações precedentes. Quando o caos e a destruição houverem atingido o limite a partir do qual o próprio funcionamento da organização económica e social se haja de tornar materialmente impossível, a nossa civilização perecerá; a humanidade, tendo retornado a um nível de vida mais ou menos primitivo e a uma vida social dispersa em colectividades mais ou menos pequenas, recomeçará sobre uma nova via que nos é absolutamente impossível prever qual seja.» (p.121). No entanto, e apesar de semelhante quadro traçado, Simone Weil não deixa de equacionar panoramas (apenas teóricos?) que contradizem o negrume daquelas proposições por si avançadas – «a mais aceitável das sociedades seria aquela em que o comum dos homens se encontrasse, as mais das vezes, na obrigação de pensar ao agir, tivesse as maiores possibilidades de controle sobre a totalidade da vida colectiva e possuísse um máximo de independência» (p.100). Crítica do utopismo e do irrealismo das propostas revolucionárias, Weil não deixa de pensar a mudança e de lhe dar a importância devida no seu pensamento, enquanto possibilidade, mais que não seja, teórica – «quanto a suprimir a própria opressão, porém, seria necessário suprimir todas as suas fontes, abolir todos os monopólios, os segredos mágicos ou técnicos que fornecem o poder sobre a natureza, os armamentos, a moeda, a coordenação de trabalhos» (p.53)
Análise lúcida dos mecanismos que originam e condicionam a opressão Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social é uma crítica informada das propostas teóricas, políticas e económicas que a precederam e consigo coexistiram. Este livro, escrito há mais de oitenta anos, é um manifesto de uma actualidade impressionante. Pelo rigor da sua análise, pela sua capacidade de suplantar as limitações da sua própria cronologia, possui aquela terrífica intemporalidade das obras definidoras.
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