Dia 22 de Outubro, o público madeirense recebeu uma das peças mais esperadas do Festival do Avesso, com casa cheia. No mundo proposto por Elmano Sancho, autor, diretor e ator, em Damas da Noite, o gatilho de uma expectativa frustrada – os pais esperavam uma menina, Cléopâtre, mas nasceu um menino – a transformação é tema e linguagem da peça, permitindo que antevejamos imagens do inconsciente, fantasmas familiares e fragmentos de si. Um tema delicado, que o público recebeu com entusiasmo desde a entrada do espetáculo, dançando e batendo palmas no show das duas habilidosas Drag Queens da noite de Lisboa: Dennis Correia (Aka Lexa Black) e Pedro Simões (Aka Filha da Mãe). Mérito também da encenação, que navega por paradoxos com maestria, e numa trama que podia ser pessoal – ou uma “farsa de Elmano Sanches”, como sugere o subtítulo do trabalho, mas a transcende. A impessoalidade com que Elmano bem escolhe para se colocar em cena transforma-o em psico-pombo de algo maior, num tempo em que as performances do masculino e feminino são questionadas ao extremo e mudanças em grandes feridas da humanidade, como a vivência da sexualidade e da identidade sexual escolhidas, estão na ordem do dia.
As drags – afirmação da presença? – conduzem o parto de Cléopâtre-Elmano, uma maiêutica pop. Um processo em que os clichês são transpostos exatamente pelo caminho perigoso de se mergulhar neles, numa encenação repleta de paradoxos. À carga emocional de algum processo de cura que parece que somos testemunhas, somam-se cenas com forte tom político e outras em tons operísticos e de extrema plasticidade, como o sofisticado jogo anjo branco e negro no balanço, em cena dos excelentes atores-drags.
Todos os elementos da cena são potências para a transformação que pede a trama, desde o cenário – que nos remete ao teatro de revista, o mundo dos cassinos de vedetes celebrados em Hollywood na primeira metade do século XX, em efeitos metateatrais de celebração cênica. A luz presenteia-nos revelando os esboços de formas fluídas do inconsciente e a exuberância da sexualidade festiva, os sonhos manifestos. Os figurinos-máscaras em alguns momentos assumem mesmo o protagonismo da cena. Acrescentam sentidos, quebram nossas expectativas, revelam nossos próprios clichês, marcam transformações e posições das personagens, sexualidades. Um trunfo da peça é optar por processos de transformação – seguidos de performances musicais e coreográficas, na maioria das vezes – que se realizam e se desfazem, como neblina, no momento seguinte.
Sábado foi dia de Cárcere, solo do brasileiro Vinícius Piedade, com texto dele e de Saulo Ribeiro. Um pianista, na prisão, tem seus dias contados pela iminência de uma rebelião, em que ele sabe que será vítima. O público esteve com Vinicius, quase como um ator a mais – conversou, segurou a lanterna que o iluminava em determinado momento da peça com diligência e, num dos momentos mais bonitos da noite, quando o ator pede uma música com o tema da liberdade, entoou um afinadíssimo “Grandola, Vila Morena”, de José Afonso, hino da Revolução de 1974. O coro e a precisão das bonitas vozes proporcionou ao auditório uma verdadeira experiência de comunhão, como se espera de um bom teatro. O dia terminou com um show de músicas dos anos 1960 até a atualidade, com a banda Going Back.
No domingo, as crianças foram contempladas com a estética apurada de Capuchinho, na encenação de Paulo Lage. Cenário minimalista, luz, movimento dos atores, figurinos, trilha sonora – tudo criado com muito cuidado para levar a serio o teatro para bebês, de 6 a 36 meses.
A encenação criou atmosferas envolventes para o público infantil, que lotou as duas apresentações do dia. E mesmo os mais pequeninhos reagiram às sutis mudanças de energia da peça, revelando a boa comunicação do trabalho com diferentes idades. A ópera bufa “Dueto de gatos”, de Rossini, adaptada para um diálogo entre Lobo e Capuchinho Vermelho, num jogo de metamorfoses e desejos, foi um dos momentos altos da peça.
As crianças também assisitram à Squid, da companhia Gestalt Theatre, do Canadá com o português que vive em Toronto Mario Lourenço, um palhaço na conquista de seus medos. Talvez aqui a opção de manter muitos trechos em inglês tenha prejudicado um pouco a fruição do público, mas as crianças, ávidas porparticipar do jogo cênico, lançaram bolas e embarcaram na proposta de fazerem parte da peça.
O domingo terminou com a exibição de Matriarcado-América, um teatro-filme da companhia brasileira Estelar de Teatro, constelando temas como as crises ecológicas, políticas, sociais e buscando novas imagens, um trabalho contemplado por uma das mais importantes e concorridas Leis de Fomento cultural brasileiras: a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.
O Festival do Avesso celebrou, assim, no seu primeiro final-de-semana, a diversidade de linguagens e temas e promete seguir com, ao todo, 16 apresentações em 9 dias de festa cénica.
Mais Teatro AQUI