O conhecido filósofo português José Gil, é autor de obras publicadas sobre Fernando Pessoa como O Devir-Eu de Fernando Pessoa e Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, obras que usam a hermenêutica filosófica como uma metodologia interpretativa das obras e do pensar de Fernando Pessoa. Ritmos e Visões (Relógio d´Água, 2016), é o seu mais recente livro sobre o grande poeta Português, no qual Gil propõe que toda a obra poética de “Fernando Pessoa se tece à volta de ritmos e visões”.
Neste livro, José Gil explica que a sua definição de “visão” engloba a projecção da obra poética para um mundo interior, onde forças psicanalíticas se conjugam com imagens para produzirem uma multiplicidade capaz de englobar o real. Posteriormente, Gil esboça a teoria de que os“ritmos” associados à vida moderna transformam as imagens do real em “visões” poéticas. Ao mesmo tempo, o processo de desfragmentação interior do poeta está associado às “visões” do poeta e este processo está associado a um acto criador, em que o poeta é capaz de conseguir uma reunificação ontológica do sujeito a partir do “caos” psicanalítico presente no acto criativo:
“Um risco recorrente é o da loucura- que leva ao desmoronar do processo criativo. A nossa interrogação torna-se mais precisa: como é que o artista que convoca o caos para criar o novo escapa ao movimento destruidor desse caos? E o que sucede quando precisamente a criação falha- e a psicose ameaça? Haverá um caos destruidor e um caos criador, ou tudo depende dos poderes do artista- ou do acaso?”(Gil: 34).
O que poderia ser mais uma nova e interessante interpretação da obra de Fernando Pessoa, acaba rapidamente por tornar-se numa tentativa fracassada de impor categorias filosóficas tão fechadas e crípticas, que de tanto quererem elucidar, pouco acabam por explicar. Gil, com o seu insustentável arcaboiço filosófico, deixa muito pouco espaço para considerar a ambiguidade metafórica dos poemas de Pessoa. E a redução de todos os artífices da linguagem a uma interpretação psicanalítica do “caos criador”, modelado por um “ritmo” e expresso por “visões”, constitui um por padrão filosófico recorrente ao longo deste livro, que faz pouco para explicar a singular multiplicidade estética dos poemas de Fernando Pessoa e dos seus heterônimos.
Para além disso, as constantes tentativas de Gil de extrapolar directamente acontecimentos biográficos da vida de Pessoa para alguns dos seus poemas, e com elas estabelecer uma teoria critica psicanalítica mais alargada, descuram toda a obra académica mais recente sobre Pessoa. Gil chega ao extremo de sugerir que um sinal ortográfico de um poema de Pessoa possa ter uma interpretação hermenêutica/psicanalítica de um episódio real da vida do poeta:
Que indica o travessão? Um branco que marca a passagem inominável e inexprimível do acontecimento real ( o sentido-sofrimento do trauma) e a sua tradução literária.” (Gil: 47).
Neste exercício de psicanalisar um travessão, Gil faz uma correspondência inequívoca para um episódio particular da vida do poeta, episódio este que nunca é devidamente contextualizado. Que correspondência terá igualmente, uma doença neuro-degenerativa como o Alzheimer, que envolve a limitação de movimentos individuais, com uma restrição da capacidade da percepção do tempo e do espaço sugerido num dos poemas de Fernando Pessoa?
Outro tema recorrente neste livro de José Gil é a sugestão de que o poeta é um “organizador do caos”, o que constitui uma visão caduca do Romantismo literário e que ignora as interpretações mais recentes sobre a fragmentação subjectiva e de multiplicidade estética que caracterizam o grande poeta do Modernismo Português. José Gil considera que Fernando Pessoa é o recipiente de uma espécie de poder divino que parece ser capaz de organizar os motivos literários da sua poesia, e com eles resolver os seus problemas existenciais. É nomeadamente através do aparecimento dos heterónimos, que se dá o processo de “heteronimização”, um processo que para Gil funciona como um dispositivo terapêutico que condiciona, e ultimamente parece ser capaz de resolver a caótica fragmentação psicanalítica do poeta:
“Foi certamente o que fez Fernando Pessoa- que possuía a extraordinária capacidade de manter uma distância estável de si a si, no meio das maiores tormentas psíquicas, e assim de sair, dominar e “aproveitar” o caos. “ (Gil: 40).
Segundo José Gil, é a desconstrução de uma componente psicanalítica (por vezes quase patológica) da poesia de Pessoa que permite explicar o desdobramento poético e o desencadear do seu processo criativo.Esta leitura crítica pouca sustentada sugere que existe uma associação entre uma interpretação clínica da vida do poeta que compreende a realidade do “caos” poético, e que permite explicar o fenómeno literário de Pessoa. No entanto, muito do que aqui é proposto não passa de uma escrita filosófica circular, um jogo de fumo e de espelhos, que se revela contraditório e redundante, tanto nos seus termos, como nos seus argumentos:
Que efeito teve no sujeito o mergulho no caos e no inconsciente? Cindiu-o, duplicou-o, melhor: reduplicou-o multiplamente”(Gil: 41).
Uma outra tese proposta nesta obra é sugerir que a ideia do “caos” poético está associada a uma “erogenização” (referência Lacaniana novamente) do corpo, a partir do qual se cria a linguagem poética, sendo esta balanceada por diferentes fontes de energia e por diferentes “ritmos”. Consequentemente, a escrita poética revela-se num “estado de criação”, e os grandes artistas são aqueles que funcionam em “intensidade máxima” numa aceleração de “máquinas” que é capaz de controlar o caos poético:
O volante entra na dinâmica total da máquina, vibrando como uma peça que a sacode. O volante envolve-se assim no movimento geral das sensações. Tudo isto traduz uma mudança de ritmo, que vai acelerar cada vez mais até quebrar com o fim do delírio. (Gil: 62)
Os termos escolhidos por Gil, provenientes de uma fenomenologia gasta e reciclada, e a sua escolha de metáforas pouco imaginativas, explicam pouco da riqueza, da complexa estrutura, ou do sentido da Ode Marítima de Álvaro de Campos. O longo culminar deste jargão filosófico é uma metáfora grotesca criada pela imaginação de Fernando Gil, uma espécie híbrida de um dispositivo filosófico-estético-psicanalítico: o “Corpo-sem- órgãos (CsO)”, um dispositivo que patenteando o caos da vida poética, parece conseguir tudo tematizar e porventura tudo explicar na poesia de Pessoa:
“Concretamente, Fernando Pessoa vai criar o caos ao mesmo tempo que cria as condições para sair dele, isto é, vai construir o corpo-sem-orgãos (CsO) do poema. O paradoxo é que a própria Ode Marítima resulta, enquanto obra poética, do processo que, indirectamente, encarnando-o num exemplo, “tematiza”. O caos manifesta-se na “balbúrdia” das cenas, das imagens excessivas, das intensidades desvairadas. “ (Gil:98)
A multifacetada obra poética de Fernando Pessoa é objeto de inúmeras análises críticas, usando as mais diversas expressões de pensamento. Este novo volume de José Gil, constituído por quatro ensaios sobre a obra de Fernando Pessoa, falha em oferecer uma critica consistente, ou uma leitura reconfortante para os inúmeros leitores devotos do grande poeta Português.
Texto de Jorge Ferreirinha
Por defeito profissional, Jorge Ferreirinha escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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