home Didascálias, TEATRO Romeu e Julieta – TNDMII, 20/2/2020

Romeu e Julieta – TNDMII, 20/2/2020

Neste Romeu e Julieta, John Romão quis desafiar as convenções e pautar a sua dramaturgia do clássico shakespeariano pelo desejo avant-garde, numa espécie de concerto de Radiohead em que “Idioteque” é repetida indefinidamente- «Ice age coming, ice age coming, let me hear both sides…». O espectador pode sentir-se perdido num espectáculo tão livre, caixa negra e crua que se desnuda por completo, entre canos e extintores e saída de emergência visível ao fundo, numa sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II ultramoderna e futurista, que parece ampliada com laivos de laser arroxeado, rosado e panorâmico, onde tudo parece cibernético, atmosférico e a fazer lembrar Blade Runner. Com a necessária digestão, este Romeu e Julieta é uma versão incendiária, embora o fogo seja invisível, guardado no peito do espectador como último porto de abrigo da emoção no meio da absorvente tecnologia e do constante avanço do indivíduo em círculo, rodopio e espasmo, que perdeu a verticalidade, literal e metaforicamente, algo comum às personagens principais, de ambas as famílias perdidas na sua rivalidade. Apenas os coadjuvantes (Frei Lourenço e Ama, misteriosos e espectrais) têm movimento numa primeira fase. O final catártico resume o todo via libertação trágica pela morte, num encontro entre peças de corpos entrelaçados.
Romeu e Julieta é uma verdadeira instalação. Podia estar até numa galeria de arte. O uso da expressão plástica, da luz, da voz, do som são inexcedíveis. É através da retracção da emoção até à sua eliminação que se desenha a crítica feroz à desintegração da empatia e do amor incondicional. Numa sociedade brutal, com muros e tecnologia até às entranhas, esquecemos o corpo, a carne, separada da mente. É nesta corrida de inconsciência contra a força irreprimível do destino que os amantes Romeu e Julieta, imberbe e imatura respectivamente, encaram tudo e todos em direcção ao fim, sem limite de velocidade. Mortos pela força do choque, depois de finalmente recuperarem para si a materialidade, vivem de novo, porque o amor é a força maior num tempo que só o permite circunstancial e atomizado. Não é uma peça para todos e muito menos de digestão ligeira. Artesão de sonhos, Shakespeare, mestre da construção da personalidade e da exposição visceral das estruturas do desequilíbrio humano, dribla o mais sombrio e trágico, mas para que uma certa leitura de esperança dê à luz uma consolação metafísica em simultâneo, é preciso atentar nos pormenores, que nesta versão são significativos. A criança é disso sinédoque, bem como os elementos e texturas palpáveis e corpóreas. Veja-se o seio da ama, também como conexão ao corpo e simultaneamente a inversa desconexão e necessidade de libertação de um leite seco mais do que “envenenado”. Como em toda a arte que marca, o esforço e dor autoimpostos pelos actores (embora paradoxalmente projectando um estado anestésico) são familiares. Quantos não ficaram, ficam e ficarão assim por amor, por incapacidade, inércia ou depressão, caindo no abismo?
A penetração (e a sua sede virginal) que Julieta tanto anseia é figurativa, na medida em que, por uma série de razões, tem vindo a perder-se (ou nunca realmente se encontrou) esta união do masculino com o feminino que contribui para a formação individual da personalidade. Falamos de uma penetração inequívoca do inconsciente e da sombra do indivíduo e do colectivo. A noite e a penumbra estão omnipresentes ao longo da peça. Essa dupla sombra é a chapada de luva branca, por antítese, que necessitamos aceitar. E ela faz-se pela desobediência: o amor proibido entre os jovens Capuleto e Montéquio, num beijo incorpóreo em que é preciso ouvir o texto (bela versão de John Romão, a partir da tradução de Filomena Vasconcelos). Em paralelo com a velocidade da luz, rápida e feroz se torna a fúria de viver que imobiliza e se torna câmara lenta, esquecido o verdadeiro toque, na corda bamba entre a neurose e a psicose de um corpo desmultiplicado, caída na armadilha da tecnologia contemporânea, que semeia a solidão e mata a empatia. Romeu e Julieta pertencem a um imaginário demasiado romantizado, aqui hábil e inteligentemente desmantelado. Sobram espaços vazios para o espectador preencher.
Destaque-se a desafiante e rica prestação do elenco feminino. Mariana Monteiro como Julieta oscila entre o tom orgásmico, o desespero e a indiferença. Mariana Tengner Barros enquanto ama presenteia-nos com uma prestação completa: dança, corpo, voz etc. Com elas contracenam Matamba Joaquim tem uma presença misteriosa e atemorizadora no seu big-bang de tiros, acompanhamento sensorial da areia e da tinta escarlate e, no papel de Romeu, João Cachola, que retrata com devoção a masculinidade feita joguete do destino, um James Dean que vive e morre rápido demais, mas de corpo estático, atordoado, abafado pela impulsividade.
O verdadeiro amor faz-se corpo a corpo: sobreposto. Na velocidade certa, remetendo para um universo em que a beleza e a verdade são intemporais, independentemente da forma. E oxalá ainda consigamos sentir o perfume daquela rosa.

Ficha Técnica

texto William Shakespeare
versão John Romão, a partir da tradução de Filomena Vasconcelos*
encenação e cenografia John Romão
dramaturgia John Romão, Marta Bernardes
com João Arrais, João Cachola, João Jesus, Mariana Monteiro, Mariana Tengner Barros, Matamba Joaquim, Rodrigo Tomás, Rui Paixão e participação de Gonçalo Menino, Salvador Graça ou Vasco Venâncio
desenho de luz Rui Monteiro
desenho de som Daniel Romero
figurinos Carolina Queirós Machado
bandeiras Horácio Frutuoso
apoio à cenografia F. Ribeiro, Pedro Jardim
produção executiva Patrícia Soares | Produção d’Fusão
produção Colectivo 84
coprodução Teatro Nacional D. Maria II
residência artística O Espaço do Tempo

*editora Relógio D’Água e CETAPS – Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies.
M/12 duração 1h30 (aprox.)
O Colectivo 84 é uma estrutura apoiada pelo Ministério da Cultura / Direção-Geral das Artes

Foto © Filipe Ferreira

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