Um dos primeiros aspectos que ressaltam da leitura de Rumo a Casa é a maturidade da sua autora, Yaa Gyasi. Com apenas 26 anos, a escritora (actualmente com 28) assinou um livro lúcido, solidamente estruturado, e capaz de se desviar dos obstáculos que se põem a uma empreitada como a que tomou para si. Tratar a questão africana – passe a fórmula deliberadamente esquemática – suscitaria sempre escolhos auto-impostos, por parte de quem faz essa opção temática, como sejam o risco de incorrer em maniqueísmos, o perigo de enveredar pela literatura panfletária, ou a tentação de cair em sentimentalidades acríticas. Nada, felizmente, se passou desse modo, e o romance de Yaa Gyasi é um documento integralmente emancipado de visões reducionistas e de qualquer viés que distorcesse ou sobressimplificasse. Na verdade, a linguagem de Rumo a Casa oscila permanentemente (embora sem se perder da sua rota) entre a crueza mais impetuosa – «O bebé tinha-se sujado, e Afua, a mãe não tinha leite. Estava toda nua, tirando o pequeno bocado de pano que os comerciantes lhe tinham dado para limpar os mamilos, quando o leite escorria, mas tinham feito mal as contas.» (p.43) – e o lirismo de maior introspecção – «Tentava acalmar a mente até não fiar lá nada senão o traço fino dos lábios da mãe, lábios que costumavam proferir palavras de amor numa língua que Ness já não conseguia perceber. Ocorriam-lhe frases e palavras, desencontradas ou reviradas, erradas.» (p.95)
Rumo a Casa não é o que é a tradição designa romance de personagem; é antes um romance de personagens. Nessa distinção, aparentemente microscópica, está um aspecto importante do livro de Yaa Gyasi. Em vez de se concentrar num carácter só, a autora optou por disseminar a sua atenção, e os esforços do romance, ao longo de quase três séculos de vivências individuais e colectivas – estendidas por sete gerações – que, assim, partilham a focagem da narração. Yaa Gyasi começou por tomar uma opção menos óbvia, ao localizar no século XVIII a raiz da sua narrativa. Ao mesmo tempo que esse é um auge do colonialismo, configura um ponto da História suficientemente distante para não ter o apelo «romântico», e menos remoto, de Oitocentos, nem o «exotismo» dos primeiros tempos das «Descobertas». Yaa Gyasi fixou o começo de tudo no território que viria a ser o moderno Gana – país onde, de resto, a autora nasceu –, para logo desdobrar o núcleo aí criado, e assim irremediavelmente repartir os fluxos que dele partem.
Duas meias-irmãs, Effia e Esi, vão ser origem de duas genealogias que se tocam na base, mas divergem para desenvolvimentos radicalmente diversos. As próprias circunstâncias que originam o nascimento das duas irmãs de pai diferente derivam de conflitos insanáveis, duras incidências surgidas nos golpes e contragolpes das dinâmicas históricas. Effia torna-se mulher de um oficial britânico – uma união que reforça o peso brutal do jugo colonialista, mesmo se parece conceder um laivo de (ilusória) igualdade –; a sua meia-irmã é capturada por membros de um grupo local inimigo e, mais tarde, levada, prisioneira, para a América. Essa cisão inicia a estrutura que o romance lança e há-de prolongar até ao fim. Serão cerca de três séculos de descendência repartida na genealogia e no espaço – que se encadeia até à actualidade: um ramo da família em África, o outro na América. Cada capítulo de Rumo a Casa tratará, alternadamente, de um descendente de cada uma das meias-irmãs, acompanhando não só o transcurso da cronologia, mas também as peripécias de vidas separadas por um oceano concreto e figurativo. Porque não é só no afastamento geográfico que o destino vai separar Effia e Esi. Se aquela desempenha o papel ambíguo e frágil de mulher africana de um europeu – que, no entanto, garante um futuro mais próspero para o seu filho –, à sua meia-irmã está reservado um futuro de escravidão no continente americano.
A ligação entre as partes desta saga afro-americana é feita de duas formas. Por um lado, a «pedra», um pendente, que é passado de geração em geração, pela linhagem de Effia, une, literalmente, os seus descendentes. Por outro, as narrativas que compõem cada um dos capítulos formulam constantemente remissões para a raiz africana e para o passado mais ou menos remoto da família – «Quando era novo, o pai dissera-lhe que os negros não gostavam de água, porque tinham sido trazidos através dela em navios negreiros. Para que havia um negro de querer nadar se o fundo do oceano já estava coberto de negros?» (p.321)
De modo algo semelhante ao que faz um autor como Sebastian Barry em relação à diáspora irlandesa (Do Lado de Canaã, Presença, 2012; Dias sem Fim, Bertrand, 2017), Yaa Gyasi fez da diáspora africana o centro do seu romance. Daí que seja tão difícil encontrar um fulcro único. E se seria simplista eleger a própria ideia de «africanidade» como ponto central de todo o romance, a verdade é que essa é um dos seus centros, sem dúvida. Centro que irradia para o mundo moderno e contemporâneo, que se diversifica e se confronta com os dados mais díspares, ele é, porventura, um dos aspectos que mais se devem ter em conta, quanto a Rumo a Casa.
O romance de estreia de Yaa Gyasi é um projecto ficcional arrojado, que se espraia por séculos de História, suficientemente documentado para não ser uma fantasia ociosa, mas estribado num poder evocativo e de efabulação que transcendem a mera reprodução histórica. Não se tratando, exactamente, de um romance histórico – porque o seu foco incide, em grande medida, no individual ou no familiar, e menos no contexto epocal –, Rumo a Casa é um romance de base sólida e de edifício firme, que faz da sua autora um artífice invulgarmente maturo e um praticante admirável de uma técnica que está sempre a renovar-se como arte.
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