A voz é provavelmente um dos instrumentos musicais mais desvalorizados. Sucede o mesmo com tudo o que está acessível a qualquer pessoa e a voz e o canto estão à distância de um fôlego. O seu encanto sobre nós é um prazer renovado, como veículo de emoções e memórias que acabam por a ter por banda sonora. Coloquem um piano a acompanhá-la com peso e medida e têm a receita para uns bons momentos de deleite. Midnight Shelter é disto a ilustração perfeita, com o pianista Romain Collin a produzir a sombra perfeita para a voz luminosa e sem mácula de Sachal Vasandani.
Dono de um fraseado viciante, Vasandani apropria-se com grande desembaraço e bom gosto de clássicos de Nick Drake, Bob Dylan e The Beatles, mas também de orelhudos temas pop da actualidade como “Before You Go” de Lewis Capaldi ou “Adore You” de Harry Styles, a que se juntam quatro originais para criar um disco pronto a rodar centenas de vezes ao longo de tantas outras vidas.
Midnight Shelter disfruta-se em silêncio e a cada audição os detalhes das interpretações deste duo ganham nova nitidez e impacto. Entre o sussurro de Vasandani e o piano austero de Collin cria-se uma casa temporária para as intempéries das nossas vidas, onde recolhemos aconchegados, como se diante de uma lareira no Inverno. Porque é de conforto que aqui se trata, sem arestas ou surpresas agrestes. As músicas mais familiares são revistas com texturas jazz e uma toada lenta e espaçada, entre as notas divididas por piano e voz, com momentos inesquecíveis como os refrões de “Throw it away” e “Before You Go” ou a versão de “Black Bird” no tom mais grave e cavo que lhe ouviram. E depois a balada do ano em “Great Ocean Road”, original do duo que não fica nada aquém dos seus companheiros de alinhamento.
Ouvir o álbum com auriculares permite o destaque às respirações e vocalizos surdos de Vasandani e aos pedais de Collin a sustentar a leveza transversal a todas as faixas. Um álbum com tanto de melancólico e belo quanto de misterioso e minimal, nos meios e na execução. Perfeito e irresistível, mesmo aos ouvidos mais empedrenidos.
Foto © Fernando Diaz Vidaurri
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