Apesar da sua concisão, anunciada logo no título, este breve estudo, Samurais – Uma História Concisa, de Michael Wert, acaba por funcionar como uma proposta de História do Japão. É claro que se trata apenas de um certo Japão, subordinado ao óbvio ângulo deste estudo – e nem valeria a pena dizer que o âmbito temporal é escolhido tendo em conta os propósitos específicos do historiador e académico norte-americano.
Michael Wert situa o seu estudo, por conseguinte, entre os séculos VIII e XIX, ou seja, o período no qual se desenvolveu, atingiu o seu apogeu e entrou em declínio uma figura (quase) irremediavelmente mesclada com mitos, popularizações deturpadoras e, pura e simplesmente, desconhecimentos dos mais vários. Contrariamente ao que se poderia imaginar, Michael Wert não foge à questão um pouco embaraçosa: para a maior parte de nós, para não dizer quase todos, «samurai» é um conceito estável, que não oferece resistência de maior – por muito que, sinceramente, deva ter, na mente de qualquer um, contornos vagos, indefinidos, e não isentos de confusão. O trabalho do autor está, portanto, definido: desmontar lugares-comuns, desfazer equívocos, arrumar ideias mal concebidas. É isso que fará no seu breve mas muito proveitoso livro. Mas Wert não se queda, diga-se com clareza, por esse esquema de vistos em caixas bem arrumadinhas, num simples processo de eliminação. Felizmente, este pequeno e atraente livro – seria um abuso louvar um livro de capa dura, em tempo de vacas macérrimas? – faz mais do que isso. É, realmente, uma muito concisa História do Japão o que temos diante dos olhos. Estamos, afinal, aqui a falar de «uma noção [a de samurai] mais alargada da cultura e da identitade dos guerreiros, que se viria a desenvolver ao longo dos séculos» (p.22). Pode-se acreditar nas palavras do autor. São longos séculos de definições e redifinições, ajustes e mudanças, por vezes radicais, no estatuto, conteúdo e extensão de um conceito que, aos olhos de um ocidental leigo, parece claro como água, inequívoco, qualquer coisa que possa simbolizar, de certa forma, uma nação e uma cultura. Ora, apeteceria dizer: sim e não. Porque a ideia que se faz do samurai quase nada tem que ver com o que terá sido a sua realidade, e porque tudo é mais complicado do que nos parece. E, curiosamente, seria assim durante séculos. A tal ponto que, mesmo do lado de lá, o equívoco, ou mesmo a desinformação, se foram prolongando quase imperceptivelmente – «Enquanto o Japão se envolvia em guerras com a China (1894-1895) e a Rússia (1904-1905), os ideólogos promoviam a ideia de que agora todos os japoneses eram samurais.» (p.118) Um mal-entendido que mostra melhor do que nenhuma outra explicação a complexidade desta construção histórica e cultural.
Data de fins do século XII o primeiro passo para uma espécie de «sistematização» – que, na verdade, não o era, como veremos – da «chamada ordem dos guerreiros» (p.22). No entanto, como esclarece Wert, nada «estava organizado nem incluía apenas guerreiros» (id.) Simplesmente, com o fim da Guerra Genpei, em 1185, as condições estavam formadas para que se iniciasse o longuíssimo processo de formação do que viria a ser a «cultura samurai» – um conceito que o historiador se encarrega de problematizar ao longo de Samurais. Desse modo, a atitude do autor será sempre da maior reserva e especialmente atenta aos riscos de fazer afirmações absolutas: «Por precaução, é seguro afirmar que os especialistas militares particulares surgiram como característica permanente da História do Japão por volta do século IX, quando alguns deles começaram a exercer a autoridade sobre outros em vez de servirem como meros soldados.» (p.18) Ao longo de Samurais, o autor vai, então, cuidadosamente depositando na memória e na imaginação dos seus leitores informações que, já se disse, extravasam o fito único de historiar os samurais, mas que não fogem desse propósito nuclear:
«a sobrevivência de qualquer família de guerreiros dependia da gestão eficiente da sua riqueza, das relações amistosas entre aliados e, sobretudo, no caso de famílias de guerreiros de elite, das suas ligações com aristocratas não-guerreiros» (p.22)
«Na cultura nobre de Quioto, as amas-secas e de leite provinham de famílias nobres menos importantes, e os rapazes entregues aos seus cuidados brincavam e aprendiam ao lado dos próprios filhos dessas mulheres.» (p.25)
«Foi tão trágica a derrota dos guerreiros, das mulheres nobres e dos servos Taira, que, segundo a lenda local, os espíritos dos guerreiros Taira ficaram gravados nas carapaças de pequenos caranguejos.» (p.27)
«Essas tempestades [uma série de fenómenos que “protegeram” os Japoneses das invasões mongóis] ficaram conhecidas como vento divino (kamikaze), termo que só se viria a popularizar através a propaganda do tempo da guerra, mas décadas de 1930 e 1940.» (p.37)
«A espada, porém, era apenas uma arma secundária [perante o predomínio do arco e da flecha] até ao século XIV» (p.49).
«Só no século XVI é que os japoneses passaram a construir castelos destinados a evitar a entrada dos inimigos» (p.52)
https://youtu.be/GF5U83UIX1o
Mas o que provam e, mais importante, para que servem estas citações? Aparentemente, não muito. Mas em conjunto, são muito mais do que uma espécie de guia para o exotismo. Pelo contrário, são uma forma de reconhecermos uma sociedade e uma cultura com muito em comum com qualquer outra: a necessidade de acordos «à esquerda e à direita», como se diria em politiquês luso, e não muito distinta do que se passaria na Idade Média, que assistiu ao nascimento da nacionalidade portuguesa. Permitem-nos, contudo, aceder a um certo «matriarcado» que, em determinados períodos, quase o foi, o japonês – descontada a apropriação cultural. Também assim percebemos até que ponto a História do Japão é um palimpsesto de referências, algumas das quais (como o nome dos célebres pilotos suicidas) nos são estranhamente familiares. Até mesmo um elemento que tanto compõe o imaginário europeu, como os castelos, conhece uma réplica no Japão. Ainda que o autor nos esclareça, desfazendo grandes ilusões transculturais – «Nos primeiros tempos, como durante a Guerra Genpei, existiam algumas fortificações, mas nada de grandioso nem de permanente.» (p.51) Lá se vai a imagem dos castelos à imagem das gestas de cavalaria europeias… Talvez só o nome seja comum ou equiparável. Por fim, a imagem de marca destes guerreiros, a espada, não passa, afinal, de uma peça de apoio, e nem sequer especialmente arraigada nas tradições mais remotas da «cultura samurai». Mas, no fim de contas, o que fica de pé que o historiador não deite por terra? Muito, mas também muito pouco. Os samurais são pormenorizadamente descritos, e são desmentidos quase todos os mitos a eles associados com não menos detalhe. Quase a encerrar o seu livro, Michael Wert apresenta um resumo absolutamente convincente – «E o que é que se passou com a “forma de vida dos samurais”? Não era de modo algum tão influente entre a populaça como entre os funcionários do governo e os militares de alta patente. A maior parte das pessoas acreditam ter sido Nitobe Inazō a definir bushido [«caminho do guerreiro», expressão que vem de «bushi, que significa guerreiro» (p.15)] para um público moderno no seu livro Bushido: a alma do Japão, publicado em 1900 em inglês para americanos.» (p.119)
Os samurais são, portanto, uma realidade histórica, de raízes profundas e muito antigas, mas com assimilação ocidental bastante tardia e, em muito, deturpada. Trata-se de uma classe de guerreiros de carácter nobiliárquico e ligação íntima com o poder, mas cuja definição levou séculos a sedimentar-se, através de complexas mudanças que fizeram desta realidade local um mosaico de peças de encaixe minucioso, ao qual, de longe, nos parece fácil atribuir determinado desenho. Vistas de perto, no entanto, as peças revelam motivos especialmente complexos e fascinantes. Este livro de Michael Wert constitui um guia inestimável para interpretá-los.
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