Assim que Joana Craveiro entra em cena para este Silêncios Persistentes, a primeira coisa que anuncia é que aquela será uma performance metódica. Desde logo, esta declaração deixa-nos espectantes, talvez até desconfiados. Apresenta-se um retroprojector singelo, uma mesa ao fundo com um leitor de cassetes e um gira-discos portátil. À boca de cena a secretária e a cadeira onde Joana se sentará com outro retroprojector, mostrando-nos, de forma escrupulosa, as fontes (que insiste em nomear como tal) da sua investigação histórica e da sua acção performática. Nada ali é acessório ou fortuito, mas um meio de acesso à Memória, uma ferramenta metodológica de pesquisa.
Projectam-se frases eruditas, de teóricos que enquadram o que estamos a tratar. Joana põe um vinil a tocar, uma fonte valorizada pela dedicatória de um cantor latino-americano de intervenção, em declarada resistência à ditadura. As cassetes, num som magnético, são ouvidas como ecos onde “a memória irrompe”: a memória sombria da ditadura, da Guerra do Ultramar e da Revolução dos Cravos, numa evocação da forma como toda uma geração viveu esse período único da nossa história.
Na mesma mesa, temos uma caixa média com fotografias encontradas em casa de familiares, que foram molestadas com um furador de páginas manual pela protagonista e o irmão, em crianças, o que a fez pensar no valor de preservação da memória. Qual o valor de uma memória? Qual o valor da Memória? Um molho de cartas escritas por soldados no ultramar…e as fotografias de alguns desses homens a escrever as ditas cartas às mulheres que os souberam esperar. Percebemos que, por altura do Estado Novo, coube à mulher saber esperar. E silenciar.
Há toda uma história protagonizada por homens e das mulheres existe um longo registo de silêncios que persistem, mas ocupam o seu lugar na história e na memória.
Muito ficou por dizer, por escrever, segredos por desvendar. E há que amplificar esses silêncios, torná-los audíveis, perscrutáveis, há que dar voz a quem não a teve. À Dona Etelvina, que contou aquilo que se sabia mas de que não se ousava falar, à Dona Tal a quem Joana perguntou como foi, mas que nada pôde responder porque, entretanto, chegou o marido.
A certa altura, nós, os demais que ali estamos, damo-nos conta do inestimável valor da tradição oral que veio tecendo o nosso passado e da sua real função para a compreensão de como aqui chegámos. Também nos apercebemos que há estórias sobre coisas que ninguém viu, mas são conhecidas e contadas por aqueles que lhes juraram fidelidade e podem ser objecto de investigação.
É que a memória que conta é afinal o resíduo da realidade e da ficção, o que ficou no inconsciente pessoal e colectivo e perdurou como narrativa. E que assim como há segredos de família, há segredos de estado que levam tempo a desvendar. Joana Craveiro mostra-nos que “o passado é como a cena de um crime”.
A actriz revelou-se uma envolvente contadora de histórias, uma guardiã da memória familiar e da nossa herança comum. A sua interpretação conseguiu manter-se no ponto de contenção necessário à forma trágico-cómica com que decidiu pôr em palco estes Silêncios Persistentes. Incentivadora de um esforço de reelaboração contínua de memórias e referências pessoais, e das que sabemos serem colectivas, indício da razão de rimos com certas expressões somente enunciadas.
Em Silêncios Persistentes, Joana Craveiro (intérprete e autora do conceito, investigação e texto) conseguiu mostrar que a performance metódica não é um exercício de estilo mas uma estratégia de intervenção teatral que parte da investigação criteriosa de um tema, para o liberar na forma de dramaturgia construtivista participada.
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