Sobre a tirania, a mais recente publicação de um dos mais importantes historiadores da atualidade, chegou recentemente às livrarias portuguesas através da Relógio D’Água. Timothy Snyder é um nome incontornável na investigação histórica sobre o século XX, em especial sobre os regimes totalitários que devastaram a Europa. Em 2013, ganha o prémio Hannah Arendt (cujo intuito é promover o pensamento político a partir da perspetiva que a autora alemã preconizava), um reconhecimento decorrente, sobretudo, do impacto que o seu Bloodlands – Europe Between Hitler and Stalin (2010) teve, ao adotar um ângulo mais abrangente no estudo da Segunda Guerra Mundial (em Portugal, editado pela Bertrand com o nome Terra Sangrenta – a Europa entre Hitler e Estaline). Em 2015, publica uma espécie de continuação desta obra, Black Earth – The Holocaust as History and Warning (Terra Negra – o Holocausto como História e Aviso, também pela Bertrand). Prosseguindo a investigação que já vinha dando a conhecer, coloca, nestes dois volumes, o enfoque nos territórios que a história ocidental até aqui insistia em ignorar, o leste europeu. Tanto nacional-socialistas como soviéticos, perpetraram e espoletaram, nas geografias atuais da Ucrânia, Letónia e Lituânia, atrocidades abomináveis que a visão reduzida da catástrofe, na “abreviatura-padrão”, tão confortável para tantos atores políticos, em que se tornou Auschwitz, por demasiado tempo ignorou. Neste sentido, Snyder repõe a justiça na hora de convocar noções de vítima e perpetrador. A História do nazismo, do Holocausto, do estalinismo fica, com Snyder, bem mais completa.
O que aqui nos traz, no entanto, é um livrinho que, claramente dirigido ao grande público, e não apenas aos especialistas ou interessados em matéria histórica, apresenta, de forma rápida, mas não por isso simplista, alguns resultados presentes nas obras anteriores, mas enquanto lições contra a tirania. E porquê lições? Neste livro, Snyder dirige-se diretamente ao leitor (em Português, a forma “tu” apela ainda mais diretamente ao público jovem), para o informar de pequenos eventos, ações e formas de estar na política durante, sobretudo, as décadas 20, 30, 40 e 50 do século passado, como guia ou manual de ação para 2017. E que tirania? Este livro desconstrói a atual retórica da extrema-direita europeia e da onda Donald Trump nos EUA enquanto prenúncio de uma política dominada por valores que mais não são do que a repetição, devidamente adaptada ao século XXI, daqueles em que os totalitarismos anteriores se baseavam. O prólogo abre precisamente com o óbvio: “A história não se repete, mas ensina.”
As lições estão numeradas e começam com um pequeno resumo de pouquíssimas linhas, em forma de conselho ou máxima. A número 2, por exemplo: “Defende as instituições. São as instituições que nos ajudam a preservar a decência. Também elas necessitam da nossa ajuda. (…) Por isso, escolhe uma instituição que te diga algo – um tribunal, um jornal, uma lei, um sindicato – e toma o seu partido.” O tom pode parecer, no início, algo invasivo. E é isso mesmo que Snyder pretende – apelar à iniciativa, a sermos resistentes à inação e à inércia: “Pratica uma política corporal. Ao poder convém que o teu corpo amoleça na poltrona e as tuas emoções se dissipem num ecrã. Sai à rua.” (lição 13). Poderia ser um mero panfleto político, com rasgos de manual de autoajuda (com tudo o que depreciativo há nesta designação), se, em seguida, o autor não exemplificasse, com dados concretos, como isto pode fazer a diferença: “Se os tiranos não sentirem as consequências das suas ações no mundo tridimensional, nada irá mudar”, explicando, sucintamente, como o movimento operário “Solidariedade”, originário na Polónia, conseguiu impor-se, mesmo apesar da proibição e violências perpetradas pelos regimes comunistas de leste, numa solução pacífica obrigatoriamente negociada com os comunistas após a queda do muro. Ou: “Quando passamos a repetir as mesmas palavras e frases que surgem nos meios de comunicação social com transmissão diária, estamos também a permitir a ausência de uma perspetiva mais ampla das coisas.” Estamos na lição 9, “Estima a nossa linguagem.” Hitler é aqui chamado à argumentação, perante a sua rejeição de qualquer oposição política: o “povo”, que não era todo o povo, “lutas” ao invés de confrontos, a “difamação” do líder que constituía qualquer opinião que veiculasse uma perspetiva diferente da do próprio. Aqui não são deixadas em suspenso quaisquer dúvidas: Snyder compara sem hesitar “o presidente”, como várias vezes refere, com os piores personagens políticos do século XX. Neste sentido, este livro é fundamentalmente dirigido à juventude norte-americana (veja-se, a título de exemplo, a lição 7: “Sê prudente se tiveres de andar armado”), mas qualquer jovem ocidental retira daqui ilações essenciais para o mundo e o tempo em que vive: “Dispor de semelhante perspetiva [mais amplas das coisas], requer mais conceitos, e ter mais conceitos à nossa disposição requer leituras”. E, de repente, já estamos dentro do 1984 ou do Fahrenheit 451: “As personagens dos livros de Orwell e Bradbury não puderam fazer isto – nós ainda podemos.” É tão ampla a visão de Snyder que até nos dá sugestões de leitura para o nosso tempo: de Dostoievski a Roth, de Kundera a J. K. Rowling; de Arendt a Camus, de Václav Havel a Tony Judt. Escusado será dizer que o espelho de Trump – Vladimir Putin – e as suas relações com a extrema-direita francesa ou com os resultados das eleições norte-americanas não ficam de fora deste pequeno manual pedagógico.
Sobre a tirania é urgente e fundamental, e não desejamos retirar o prazer da sua leitura, mas precisamos, pelo menos, de destacar a lição 18, pela sua especial pertinência nos nossos dias – os mais recentes, os atuais, e os vindouros: “A tirania, na sua versão moderna, não é mais do que a gestão do terror. Quando ocorrer um ataque terrorista, lembra-te que os líderes autoritários exploram acontecimentos deste género com o intuito de consolidarem o seu poder. O súbito desastre que exige o fim de freios e contrapesos, bem como a dissolução dos partidos de oposição, a suspensão da liberdade de expressão, o direito a um julgamento justo e por aí adiante, é o truque mais gasto do manual hitleriano. Não caias nele.” Elementar. Parece exagerado? Snyder contesta, num outro momento: “Pós-verdade significa pré-fascismo.” Estejamos atentos.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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