Subitamente a verdade: a verdade do beijo desesperado entre o “Doutor Açúcar” (José Leite) e Catharine (Carolina Salles). Talvez devêssemos considerar verdadeira a versão de Catharine. A verdade que dói, que nem todos podem ver e vem do mais profundo da alma humana e do corpo, verdadeiro compósito em turbilhão de opostos. Num jardim de várias verdades, assistimos a um desfile de versões equívocas e a uma ameaça de lobotomia a uma jovem que parece não ter nada a favor da sua presença: a tia (Mónica Garnel), a mãe (Marina Albuquerque), o primo que faleceu (Sebastian), o próprio irmão (João Pedro Dantas). No entanto, a jovem vê como aliado improvável o médico que a pode trazer à sanidade, à verdade da mentira.
Se Sebastian, invisível (apenas ouvimos a sua voz em inglês e podemos imaginá-lo de forma ora sombria, ora luminosa, num interessante desafio para o espectador), parece nunca ter crescido e sabemos que padecia de um enorme complexo maternal híper-protector, a possível verdade é que a tentativa de libertação inconsciente por parte de Catharine – arriscando a sua própria pele – poderá ter compensado. Carolina Salles, numa fabulosa interpretação de Catharine, transporta o potencial e a fragilidade in extremis, dopada, violentada e sugada pela vida de uma família disfuncional e um primo irascível e macho beta, vulgo “menino da mamã”, que apenas queria salvar da sua miséria existencial. Quanto a Sebastian, um “poeta” que escrevia um poema por Verão, demasiado sensível, flor de estufa, de gostos requintados, celibatário, segundo a mãe, quis o destino que sucumbisse em Cabeza de Lobo e, sem dignidade na morte, se de(s)compusesse – não mais do que durante a própria vida, em que fora manietado pela mãe e, sobretudo por si próprio, por um seio familiar de impotência, submissão e adulteração. O médico, de boa fé, não tem certezas quanto ao processo de lobotomia – um tratamento inovador que alivia a dor existencial, mas que também retira o que há de melhor: o fogo, a criatividade e a sobrevivência plenas.
Tennessee Williams questiona-se e questiona-nos sobre a verdade e a sua falsidade em redemoinho. Quem conta um conto, acrescenta sempre um ponto. Na realidade, as memórias podem mesmo ser objectos pós-fabricados, adulterados, altamente manipuláveis. Importa reter a verdade intrínseca, que instiga e se afasta de um sentimento de solidão tão forte quanto a própria morte. A loucura como jogo alado e efémero, caminho para um grito de sanidade. Se Catharine é fora da regra, podendo mesmo ser vista como promíscua, Sebastian, na sua homossexualidade não aceite, foi violentado em todos os espectros.
Destaque para o belíssimo cenário e ambiência da sala estúdio, recriação do jardim, elementos naturais, bem como os figurinos, o texto na sua excelente tradução, os efeitos sonoros e a encenação de Bruno Bravo, que une todos estes factores, criando uma atmosfera onírica, em efeito “matrioska” de sentido. Nesta medida, se a vida fosse um sonho e a verdade uma linguagem por decifrar, quem seria o seu melhor intérprete? Já sabemos a resposta. Paremos de mentir a nós próprios…
Ficha Técnica
encenação Bruno Bravo
texto Tennessee Williams
tradução Miguel Castro Caldas
com Alice Medeiros, Carolina Salles, Joana Campos, João Pedro Dantas, José Leite, Marina Albuquerque, Mónica Garnel
cenário e figurinos Stéphane Alberto
confeção de figurinos Atelier Oficina
construção de cenário David Paredes
assistência de cenografia Virginia Alves da Silva (Cuca)
desenho de luz Alexandre Costa
música e sonoplastia Sérgio Delgado
voz off Bruno Huca
produção executiva e assistência de encenação Leonardo Garibaldi
coprodução TNDM II, Primeiros Sintomas
Foto: @filipeferreiraphoto
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