Diante desta Suite Molière, ocorre-me como é raro encontrar textos sobre actores em início de carreira (que não meramente laudatórios, de amigos e conhecidos nas redes sociais). Talvez por ser ingrato o papel de analisar quem começa no ofício do Teatro pela lente de quem o vê pela lente da crítica. Mas assistir a este espectáculo relembrou-me que, aparte a incontornável inexperiência do elenco e possíveis insuficiências da produção, o entusiasmo, a alegria e amor pela sua Arte demonstrado podem transformar esse óbice em condescendência e qualquer tentativa de o deixar por escrito arrisca a irrelevância. Avencemos então.
O que estes actores trouxeram na sempre activa e relevante Casa das Artes de Famalicão foi dedicação e saudável desrespeito pelos textos do dramaturgo francês, temperados com a irreverência que também tiveram, no seu tempo, mais do que qualquer teatro até ali. Anunciada como uma leitura encenada, a Suite transformou-se numa celebração do Teatro. O registo cómico ajudou à descontracção geral, mas a riqueza de detalhes das interpretações e o toque do Manuel Tur na direcção de actores e encenação, perceptíveis sob toda a pantomina reinante e a generosidade do elenco, seguraram o que poderia transformar-se numa festa de fim de ano do ensino secundário, elevando-a a showcase do que uma escola de teatro pode e deve fazer para formar actores de qualidade.
O espectáculo foi uma diatribe sobre os grandes sucessos de Jean-Baptiste Poquelin, Molière para o Mundo (2022 é o ano do bicentenário do seu nascimento) interpretados com leveza e assertividade por uma trupe de sete actores formados na ACE de Famalicão em diferentes anos, com o foco na palavra, na expressividade e movimento, mais do que no rigor cénico ou na precisão da encenação.
Dinâmicos e surpreendentes, os actores souberam partilhar espaços e deixas com uma excelente fluidez, concentrados e sem atropelos aparentes. As cenas eram frequentemente complementadas com acção invisível nos bastidores, cujo som infelizmente não chegava inteligível à cena, perdendo-se assim o efeito do prolongamento do caos aparente entre os divertidos convivas.
A informalidade era o tom, com olhares cúmplices, piadas privadas e gargalhadas partilhadas com o público, testemunha participante do primeiro ao último instante. Pelo palco passaram as peças e personagens mais celebradas do dramaturgo, com notas dos actores identificando-as e tiradas mais pessoais sobre tiques e iterações dos companheiros de cena, também eles retratando quem os rodeia.
Os adereços, práticos e minimais, passavam de mão em mão conforme as conveniências, e formavam-se quadros em momentos chave, como fotos instantâneas para memória futura. O elenco, diverso, paritário e inclusivo como os tempos (finalmente) exigem comportou-se como uma família. Mesmo com o protagonismo das cenas alternado, destacaram-se naturalmente os actores com maior experiência como a Bárbara Pais (que encarnou como segunda pele a persona de diva insuportável e caprichosa) e o Francisco Lima (que facilmente tornava suas as cenas pela forma inteligente como ocupava os espaços e utilizava a corporalidade a seu favor).
Numa nota áparte, estranha-se como um aniversário destes passou despercebido em toda a temporada teatral portuguesa, ainda mais numa altura em que o zeitgeist pede insurgência e o humor intemporal e partilhamos uma temporada com o país natal de Molière.
Noites como esta são como um bom spa: regeneram, purificam, relaxam, mas também ajudam a recuperar a esperança no futuro de uma Arte que insiste em manter-se num compartimento distanciado das outras, quando a proximidade e capacidade de encarar a realidade circundante e a crítica fora do circulo dos pares e amigos como natural e saudável seriam mudanças essenciais para este sector.
Um bem haja a todos os envolvidos e obrigado pelo convite.
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Ficha Técnica
SUITE MOLIÈRE
a partir de várias peças de Jean-Baptiste Poquelin
Encenação: Manuel Tur
Interpretação: Adriana Frasco, Alexandre Sebert, Ana Margarida Mendes, Bárbara Pais, Catarina Malheiro, Francisco Lima e João Lin
Espaço cénico: Ana Gormicho
Desenho de som: João Pinto Félix
Desenho de luz: Cárin Geada com Diogo Saraiva
Figurinos: Anita Gonçalves
Assistência de Encenação: Melro
Fotografia de Cena: Rui Bezerra
coprodução: 11Zero2 e Casa das Artes de Famalicão (com o apoio da ACE – Famalicão)
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