Para além de talentoso, o multi-instrumentista (v. crítica do seu álbum a solo AQUI) Chris Potter revela-se cada vez mais prolífico, sem que, como sempre, a qualidade saia afectada. O único defeito deste Sunrise Reprise é mesmo ser um EP, porque depois de o ouvir só nos resta repetir. A sensação de ter sido gravado sem cortes, num take contínuo, é comum a todos os temas, pela sua fluidez e energia contagiante. Três músicos habituados a partilhar palcos, estúdios e ensaios, juntam-se de novo após o fantástico Circuits (Edition Records, 2019), em ambiente de jam session, mas com boa música escrita quase trauteável. A urgência em tocar tornou-se uma “experiência catártica em estúdio”, como confessa Potter, e essa libertação é audível na parca mão cheia de faixas do disco (não se preocupem porque a derradeira “Nowhere, Now Here/Sunrise Reprise” tem uns singelos e espectaculares 24 minutos e 24 segundos).
Chris Potter faz-se acompanhar dos seus habituais saxofones soprano e tenor, mas também de clarinetes, flautas e dá uma “mãozinha” nas teclas e no sampler, para entrecortar momentos contemplativos com o poder do seu sopro e das saraivadas sónicas plenas de groove e ritmos sincopados. Eric Harland é perfeito na bateria, lendo em antecipação o percurso do líder Potter e ao mesmo tempo perservando, sem atrito, espaço para dar largas à sua criatividade monumental. Com James Francies ficam os voos planantes destas cinco composições de Potter (que também produz o álbum), complementando os alongamentos dos companheiros de banda e com rédea bem solta a espaços, com destaque para a assombrosa “Serpentine”, zénite do EP colocado bem no seu cerne (terceira das cinco faixas), em que brinca com a melodia seguido de perto por Harland, liberto das limitações que a electricidade pode trazer às teclas de um piano, para lhe dar uma abrangência quase inaudita. É ouvir a partir dos 5´13´´.
O alinhamento é estruturado como uma onda imaginária de intensidade, híbrido entre música arranjada e escrita e a liberdade do improviso que a intercala e silencia. O início imaginativo e reflexivo de “Sunrise and Joshua Trees”, adensa-se com o groove contagiante, saturado com delays e ecos de “Southbound”, cujo tema bem desenhado pelos clarinetes de Potter fica gravado no ouvido e traz de bónus outro solo memorável de Francies. Depois de serpentearmos pela faixa do meio, encontramos Francies no piano clássico a acompanhar Potter, ao seu estilo bem aberto, com notas longas e directas, que os vibratos são para os fracos, até chegar ao tema lá para o minuto e meio. E que tema. Daqueles de deixar o coração bem quente e convocar tempos felizes e despreocupados. O ritmo é de balada, sem pressas nem bateria, comme il faut. “The Peanut” é mais uma faixa de que falar e ouvir por muitos e bons anos, para acabar com qualquer dúvida de que estamos diante de um dos grandes músicos do nosso tempo.
https://www.youtube.com/watch?v=AluJK3Bf-AsO final é apoteótico, com quase meia hora de puro abandono trabalhado ao sabor do improviso. Talvez seja a faixa com sabor mais “ao vivo” que ouvimos em muitos anos num disco de jazz (ou em qualquer outro de qualquer estilo). Como se os três dissessem “deixem rodar a fita que nós vamos tocar e fica como sair”. Começa com Potter à flauta, seguido em fundo por Francies e Harland, para depois passar ao sax e entrar o groove (palavra repetida, mas quando ouvirem percebem que não há outra que aqui fique melhor) no piano e na bateria, em crescendo, com o tema a entrar ao segundo minuto tocado pelos três, para termos algo a que nos agarrar na montanha russa, porque os loops vão chegar não tarda. No minuto seguinte, nova mudança de andamento, a passo de corrida com strut de cabeça levantada e sem qualquer preocupação no Mundo, que evolui (como sempre em Potter) para uma estrutura que se expande e comprime, citando depois o tema novamente para dar carta branca ao solo de Francies no piano que de clássico só tem mesmo o nome e Harland bem colado a dar chão às notas em catadupa. Nova citação do tema e Potter apresenta finalmente o poderoso Harland. Regresso ao tema e arritmia de Harland (e nossa), com Potter em eco stéreo e as teclas em tom bem baixo e saturado de electro-pulsões, com loops de sax que se vão sobrepondo. Francies e Harland seguem com a festa, num trecho bem rico em potenciais samples para quem tenha bom ouvido e queira aproveitar o trabalho dos mestres.
Ficávamos aqui o resto do dia a espraiar-nos neste delírio. Querem mais? Comprem o disco no site da Edition Records e/ou descarreguem no Bandcamp. E quando virem Chris Potter anunciado para concertos experimentem, mesmo que o Jazz não seja bem a vossa “onda”. Vai passar a ser.
Foto © Dave Stapleton
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