Na escola secundária assisti a uma aula de sociologia onde a professora mostrava fotografias de casas vandalizadas: “Isto é o que fazem as pessoas de etnia cigana às casas que o Estado lhes oferece.” Levantei-me: ”E isto é o que eu faço à sua xenofobia, atiro-a porta fora” e saí. Agi sempre na clandestinidade; os meus motins escolares eram silenciosos, organizados, rápidos e eficazes. Acredito que existem várias formas de destruir a hierarquia sem matar o rei. O conselho directivo não me expulsou porque tirei 20 no exame nacional de História.
Carlos VI de França, por exemplo; ganhou o título de Le Bien-Aimé (O Bem Amado) por ter melhorado significativamente as condições do reino mas em 1392 começou a sofrer episódios maníacos que o levaram a matar súbditos e acreditar ser feito de vidro. De Bem-Amado a Louco (Le Fou). Vivemos um presente de caos económico, social e político – uma oportunidade de converter esta emergência disruptiva numa mudança estrutural da sociedade arruinada pelo neoliberalismo.
Acredito que as instituições culturais têm esse dever de promover uma preservação reparadora ao invés de uma neutralidade tipicamente suiça, país onde paralelamente às relojoarias caras, existe a realidade do alcoolismo. Se a cultura norte-americana defende que um ego bom é um ego forte, a fim de nos aliviar do fardo que é transitar entre empregos precários, o capitalismo é uma forma de feudalismo contemporâneo – o que te pago não chega para sobreviver, a tua autonomia é ilusória, tens de trabalhar mais.
É perverso assistir à capitalização do cuidado por parte das empresas. Romantizámos o amor-próprio a ponto de ignorar a realidade e recusando completamente a ideia de colectivo. Porque não reclamar o afecto como antídoto para esta ditadura do eu? Em Genebra vi um cisne dormir, pela primeira vez, enrolava o pescoço comprido e enfiava metade da cabeça na asa. Como diz o título do livro de Paul Chan: Le bonheur de vivre dans la catastrophe du monde occidental. Sim, há alegria em viver na catástrofe do mundo Ocidental, mas ainda penso muito em Fernando Lopes-Graça: Acordai.
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Rafaela Jacinto é artista, ativista e queer desobediente do teatro e da escrita. “A música está na minha cabeça” é o seu terceiro livro, depois de “Regime” (2020) e “Fiz uma coisa má” (2021), ambos editados pela Douda Correria. Nasceu em 1994, licenciou-se em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016) e é especialista em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2019). Estudou ainda Cinema Documental e trabalhou na última década com os realizadores Joaquim Pinto e Nuno Leonel.