Há tanta gente em Maria Judite de Carvalho. Os contos de Tanta Gente, Mariana (1959) e de As Palavras Poupadas (1961), editados agora pela Minotauro, num esforço para resgatar a escritora de um certo esquecimento, funcionam como polaroids, breves vislumbres da vida doméstica de muitas pessoas, a maior parte mulheres, que se fecham ao mundo e aos outros e morrem de amores, de coração partido, de culpa, de solidão. No primeiro conto de Tanta Gente, Mariana, encontramos uma mulher que espera uma morte iminente mas aparentemente confortável com o seu fim prematuro, depois da morte de um filho e da traição do marido. À semelhança de muitas outras personagens de Maria Judite, a própria vida desta mulher já não é exatamente isso mas sim uma espécie de limbo que “ainda não é morte, mas já não é inteiramente vida” (34), um estado em que quase já não se é humano:
“À minha volta só a morte cada dia mais próxima e também o silêncio da casa, o silêncio dos ruídos da casa, da voz velha, rachada, monocórdica, da proprietária a conversar com as vizinhas (…) Às vezes são silêncio, outras são ruídos que não quero ouvir, porque já não são meus, deixaram de me pertencer. São dos outros, dos que estão vivos.” (33)
Mariana esquece-se de comer e de dormir e sente-se sozinha mesmo quando acompanhada. A sua voz é-lhe estranha, como se estivesse dissociada do seu corpo, uma marca encontrada em muitas das outras mulheres de Maria Judite e uma marca destes retratos dos fragmentos que desenham a condição feminina, dominada pelo tédio e pela depressão, no final da década de 50. O silenciamento sofrido por estas mulheres na esfera pública e a constante pressão para se ser socialmente aceite e se comportar perfeitamente traduz-se na incapacidade de Mariana dizer o que é esperado ou agir de forma correta, numa culpa constante de quem se é, de falar ou de se exprimir, que leva ao silêncio e ao isolamento: “Falei alto quando as regras mais elementares mandavam falar baixo, calei-me quando devia absolutamente dizer qualquer coisa, não soube estar. Eu, de facto, nunca soube estar. Escolhi sempre mal as ocasiões para falar e para ficar calada. Troquei tudo, baralhei todas as coisas a ponto de me não achar a mim própria.” (34)
“A Vida e o Sonho” indica exatamente os dois mundos em que as personagens de Maria Judite se movem: entre a vida insatisfatória que vivem diariamente a as possibilidades que nunca se concretizam. Neste conto, a imagem dos aviões serve de metáfora para viagens nunca concretizadas, do desejo de escapar à inércia instalada na vida destas pessoas, que não sabem qual o seu propósito ou motivação para viver: “às vezes achava-se a dizer a si próprio que não tinha nascido para aquilo e que talvez ainda estivesse a tempo de fugir. Mas fugir de quê? Para onde?” (60)
Aos domingos, Adérito veste o seu melhor fato e vai ver os navios ou os aviões, que o angustiam ao partir, “como se alguém muito querido se tivesse ido embora para sempre. Mas não era bem isso. O que ele sentia era uma grande dor por essa pessoa, ele próprio, ter ficado” (62). Depois destas viagens imaginadas, Adérito volta a casa e cai “de repente, sem preparação, na vida quotidiana, na vida antiga, na vida que estava à sua espera, na sua vida, afinal” (62). Depois, lê Robinson Crusoe ou um livro de Júlio Verne, para mais viagens que nunca saem do papel, incapaz de saber como “viver um sonho” (63). Os livros são uma imagem recorrente ao longo da obra, surgindo pontualmente como um escape em que as personagens podem entrar e, por breves instantes, ser outros, em vez de ter de sobreviver a “um dia azedo, inútil, irritante, a ter de viver (era tão aborrecido ter de viver por força dias assim, não poder fechá-los, pô-los de parte como se faz aos livros sem interesse!)” (65)
Talvez uma das personagens mais interessantes de Tanta Gente, Mariana seja Clara, uma jovem rapariga que escolheu viver sozinha e que é alvo do julgamento da sua avó por fumar em cafés, um pequeno preço a pagar para poder ter “uma vida livre, de mulher só” (67), longe da domesticidade da casa dos pais ou de um casamento, com horas certas, rotina e hábitos. Maria Judite convoca uma imagem da infância de Clara que traduz perfeitamente a forma como estas mulheres estão presas à casa: quando criança, a avó prendia-a a uma poltrona para que não fizesse “maldades” (69), num gesto já auspicioso da autoridade e policiamento da vida da jovem rapariga. Mais tarde, Clara descobre várias cartas de antigos amantes da avó, a mesma mulher que censura o seu comportamento mais libertino, numa denúncia clara de dogmas pré-revolução, que confinavam as mulheres ao espaço da casa e a um tipo de comportamento. Se existe um traço comum em todos os retratos apresentados em Tanta Gente, Mariana, incluindo aqueles pintados pela escritora presentes na capa e no início de cada livro, e que contagiam até a prosa num processo interartístico – “cinco pinceladas e ali está Clotilde” (149) – é o desejo sempre reprimido de agir, e um consequente arrependimento pelo que não foi feito, talvez o sentimento mais humano de todos.
Em As Palavras Poupadas, Maria Judite capta exatamente o que é a experiência humana destas pessoas isoladas que vivem em silêncio, numa sucessão de dias melancólicos: “(…) a vida é longa, desliza e escorre sem uma quebra. Uma sucessão de acontecimentos, uma corrente sem fim de palavras ditas e palavras poupadas. Dessas principalmente.” (137)
Uma mulher rapta uma criança para substituir aquela que nunca teve, para surpresa de todos os que a conheciam – ou achavam conhecer. Uma mãe e filha afastadas pelas diferenças entre si compactuam para esconder a morte de um pai e marido violento na noite de Natal – e depois suicidam-se em conjunto. Um homem planeia um passeio com uma mulher que não a sua e é mortalmente atropelado. O seu cortejo fúnebre passa pelo elétrico onde está a rapariga que lhe iria oferecer um escape ao seu monótono casamento e que se encolhe ao ver o carro funerário. Há ainda um casal que mata por amor e uma rapariga que cai de uma varanda (talvez acidentalmente) e uma idosa que recusa ser testemunha da sua morte, uma mulher que é deixada viúva mesmo antes do casamento ao qual queria escapar e um marido que, sabendo que vai morrer, planeia matar a mulher acamada para que esta não fique sozinha depois da morte dele. Ela sobrevive ao pacto de suicídio, ele não.
A todos e a todas aquilo aconteceu, um evento traumático que os levou a fechar as portas aos outros, algo tão esmagador que é indizível ou impronunciável. As histórias de Maria Judite Carvalho oscilam entre uma melancolia esmagadora e a ironia de pequenos acidentes que afastam ou aproximam estas pessoas, que parecem suspensas no espaço e tempo, longe do mundo e dos outros, fechados em casas que tanto os protegem como os isolam, lembrando por vezes as personagens grotescas de Winesburg, Ohio, outras um quadro de Edward Hopper, em que seres solitários olham através de janelas para horizontes longínquos.
Os dois últimos contos de As Palavras Poupadas apontam para os temas centrais da coleção: “Câmara Ardente” e “Viagem”. Neste último, um homem olha pela janela do avião para a grande imensidão do espaço e imagina a sua morte iminente, e a ironia de um acidente de avião o levar antes da doença. Nesta cabine de avião, que é “nem terra, nem céu” (233), a morte é quase equivalente a uma viagem e apenas uma passagem de um ponto para outro; para muitas destas pessoas, será a única alguma vez feita, já que a inércia tomou conta das suas vidas. Como escreve Maria Judite em “Uma História de Amor”, “[a]s pessoas nascem com asas e de repente cortam-lhas. Ficam como as galinhas, que tristeza. Restos de asas que não servem para voar.” (188). Para além das galinhas, há ainda a “aquela garrafa com o navio dentro” (187) ou os barcos que Adérito vê partir no cais, imagens de todas as possibilidades nunca concretizadas, numa belíssima coleção de contos sobre a solidão que inicia um merecido reavivar da memória no que toca à escrita de Maria Judite de Carvalho.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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