Teatro, peça escrita por Pascal Rambert, vem ao encontro de uma forte tendência actual do panorama teatral português (cujos efeitos são discutíveis), comum a alguns dos nossos encenadores/dramaturgos de maior criatividade e destaque, aquém e além fronteiras, como Tiago Rodrigues, Marco Martins ou o colectivo Teatro Praga: a auto-análise do dispositivo teatral e dos seus agentes, de forma mais ou menos expressa. Não é de todo um acaso que tenha sido o próprio Tiago Rodrigues (diretor artístico do TNDMII) a convidar o dramaturgo francês a trabalhar directamente com um elenco português (onde coexistem atores do elenco residente do TNDMII – João Grosso e Lúcia Maria – e atores exteriores a ele – Beatriz Batarda, Cirila Bossuet, Rui Mendes), depois de a peça já ter sido adaptada em territórios tão díspares como Japão, Rússia, México ou Espanha.
Desde a primeira cena que nos é indicado ao que vamos, com o longo desfilar do panejamento e filas de projectores do palco, destacando o invisível trabalho dos técnicos que garantem o correcto fluir das cenas em cada detalhe. Aos actores é dada a primazia sobre o jogo de emoções e memória(s) presente em palco todas as noites, confundindo-se a esfera pessoal com a ficcional, na eterna busca da pureza e intensidade idealizadas pelo dramaturgo. As personagens têm o nome próprio da atriz ou ator que as representa, o que contribui para adensar esta fusão de percepções.
O texto é longo e exigente, física e emocionalmente, com copiosos monólogos em que cada um dos quatro protagonistas é desafiado a deixar-se em cena. Nesta(s) fase(s) da representação, com a já referida aproximação entre a persona real e a dramática, procura intensificar-se o realismo da cena e urgência da performance, como se os actores habitassem um limbo invisível, em que ficamos a torcer que cheguem “ao outro lado” sãos e salvos, um reality show simulado dentro da grande simulação que é a peça teatral e o Teatro lato sensu. As camadas vão-se sucedendo, dando ao espectador uma multi-perspectiva simulada, abstracta e um pouco indiscriminada no que respeita à suspensão voluntária da descrença, no sentido em que cada um acredita no que fará mais sentido para uma experiência dramática recompensadora e total. Ou seja, cabe-nos escolher aquilo em que acreditamos.
A peça em si consiste num ensaio, na sua preparação e nos momentos que se seguem, de convívio e troca de vivências entre o elenco. O cenário é espartano: chão branco em contraste com o negro das paredes que rodeiam o palco, adereços reduzidos ao mínimo, como mesas e cadeiras, um telemóvel, um projector, a geleira do Rui com sanduiches e águas, com o elenco a deter o poder total sobre todos os aspectos da cena, com os quais interage. O ponto de fuga cénico é feito de corpos e palavras, o cerne do Teatro em qualquer das suas encarnações, e é aqui que radica o fascínio de todo o espectáculo. Pela qualidade dos desempenhos, com natural destaque para Beatriz Batarda e Rui Mendes, em pouco tempo a nossa atenção é cativada pela entrega a cada palavra e movimento, e pela importância dos silêncios, principalmente por parte do octagenário Rui Mendes, mais conhecido pela sua carreira televisiva, e que aqui nos relembra a sua excelência e recorda gerações anteriores (o avô, actor famoso), o peso dos gestos repetidos e da inevitabilidade da morte.
“agora vou morrer em breve e quero ajoelhar-me perante ti monstro devoraste-me engoliste a minha vida eu não tinha previsto dar-te tudo assim não tinha previsto nada nem criança nem adolescente não pensava em ti e depois tu chegaste com a tua boca as tuas mãos a tua fisicalidade o teu corpo enorme e eu fui engolido tudo bem fui engolido pela arte”
O seu monólogo é central, e é com Rui Mendes na boca de cena que testemunhamos uma longa reflexão acerca do papel do actor e do teatro numa sociedade em mudança, que conclui com uma visão (em forma de presságio) da sua despedida, da vida e do palco.
“paradoxalmente nós matamos em plena luz os criminosos da vida matam na obscuridade nós matamos na luz todos os nossos actos são feitos na luz amamos na luz choramos caímos de joelhos mortos na luz o que qualquer um faz de maneira privada nós fazemos de maneira pública passei a minha vida a tornar público e colectivo o que é íntimo e privado é esse o meu trabalho”
No teatro, local por excelência de imitação da vida, mata-se e morre-se, literal e dramaticamente, em cada texto entregue ao público com a carga que o actor consigo carrega, emprestando-lhe a intensidade desejada pelo encenador, o tempo dedicado a decorar o texto e a torná-lo seu, e o talento, conceito tão banalizado apesar de quase utópico. As palavras ferem, mas sem elas a existência, em palco e fora dele, pouco sentido faria. “sem as palavras nós tornamo-nos pesados pedras”, somos apenas um saco condenado a existir.
A linguagem dramática é também, e sempre, evocativa, primeiro do texto que lhe serve de base e depois, do contexto em que esse complexo semiótico foi gerado e, por fim, do modo como se pretende que seja veiculado em determinada interpretação. Além do peso emocional e evocativo que todo o papel de Rui Mendes representa, também João Grosso e Lúcia Maria repetem a famosa cena da varanda de Romeu e Julieta, e João Grosso interpreta duas versões da Ode Marítima de Álvaro de Campos: a que representou na juventude e a que representa na actualidade. A personagem Cirila (Cirila Bossuet) acaba por simbolizar o público em cena, indagando sobre processos de trabalho e o peso que essas rotinas, palavras e emoções têm nas vidas “reais” do elenco, para concluir que a magia e o estímulo estão na imprevisibilidade.
“nada está decidido nem no espaço nem nas intenções é só escuta e desejo e pensar que amanhã recomeçamos mas de maneira diferente a chave é essa”.
A dica que a misteriosa Conceição (que Rui indica ser a criadora do texto a ensaiar, apesar de parecer mero alter ego que utiliza para escrever anonimamente e manter o elenco em tensão) dá à personagem homónima de Beatriz Batarda, parece ser a chave para desvendar o sentido último de Teatro: “o que é que passa entre os seres o que é que os prende uns aos outros ela disse-me a Beatriz vai perceber”. A Beatriz percebe. Nós também, embora noutra perspectiva. Sempre que as luzes se apagam e os focos incidem sobre o elenco que preenche o palco, com presenças e palavras que, apesar de repetidas, germinam em novos sentidos. Porque a vida sem o contraponto da morte não faria sentido (e vice-versa) e o Teatro é mero prolongamento dessa dicotomia fundamental, criado, concretizado e absorvido por seres de carne e osso, tornados momentaneamente imortais pelas palavras, as ditas e as adivinhadas entre silêncios cúmplices, como os que fazemos, fizemos e faremos desde o instante em que sobe o pano, até que desce, para nos lançar de regresso ao Eu que habitamos.
Foto ©Filipe Ferreira
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