Teoria King Kong é duro, radical e honesto; é também contraditório, binário e muito próximo dos lugares comuns de interseção entre o feminismo dos anos 70 e a cena queer dos anos 90, das Bikini Kill, Le Tigre e outras bandas que certamente Despentes conhece. Neste texto, Virginie Despentes, que se anuncia como uma proletária do feminismo, não se desculpa nem se lamenta pela sua condição de mulher aparentemente indesejável, mais King Kong do que Kate Moss, mote que servirá para esta discussão um tanto preliminar, se bem que até, em certos momentos, iluminada, de dinâmicas de género, violação, pornografia e prostituição, onde o estado e o capitalismo são entendidos como forças hegemónicas que definem e delimitam a própria forma como homens e mulheres agem. Se o “mercado de gajas boas” é o padrão para se ser mulher, Despentes explica (como se um/a leitor/a mais informado não o soubesse) que essa tal mulher idealizada, e branca, não existe em forma alguma e em nenhum corpo feminino (ou masculino). Ao longo desta espécie de manifesto, Despentes traça o retrato de uma mulher que existe mas não fala, representada na literatura masculina e fálica sempre como objeto sexual. No entanto, esta mulher parece existir completamente fora de qualquer espaço representacional, já que o texto de Despentes parte quase sempre de generalizações, muitas vezes problemáticas, ao presumir que há uma experiência comum a todas as mulheres “feias, velhas, frígidas, machonas, taradas, histéricas”.
Para além de olhar apenas para o binarismo homem/mulher cis (algo inesperado, dada a proximidade de Despentes com o trabalho do gender hacker Paul Preciado, ou talvez este detalhe não estivesse na agenda da escritora neste contexto em particular), Despentes parte sempre da experiência pessoal para abordar questões diretamente relacionadas com as mulheres, como a violação, a prostituição ou a pornografia, todas elas com direito a um capítulo individual do livro, correndo assim o risco de tornar este manifesto, potencialmente inclusivo de várias vivências do feminino (e até do masculino, dos homens que choram e que são menos viris), numa história única. O aparelho teórico a que recorre revela que Despentes estará bastante ciente das implicações do seu texto, assim como das suas contradições, ou pelo menos sabe o que dizem as outras teóricas sobre os mesmos assuntos: na bibliografia, figuram as indispensáveis Butler, também ela traduzida pela Orfeu Negro, De Beauvoir, Califia, a controversa Paglia, Sprinkle e Solanas, para referir apenas alguns dos nomes que constituem a espinha dorsal dos estudos de género e queer, assim como das teorias sobre trabalho sexual e pornografia, alguns nomes mais canonizados e incontestados do que outros.
Se por vezes Teoria King Kong nos relembra de uma das mais antigas reivindicações dos direitos das mulheres (ser mais do que mãe, esposa e fazedora do lar – ou isso tudo ao mesmo tempo e ainda mais), no capítulo dedicado à prostituição, Despentes avança com a controversa e sempre ignorada questão (mesmo por feministas) da legalização e melhoria de condições de trabalho de trabalhadoras sexuais, assim como a proteção de atrizes pornográficas durante e depois de exercerem a sua profissão. O capítulo em que Despentes aborda a violação é particularmente premente numa época em que muito se fala e escreve sobre a cultura de violação e os movimentos, fora e dentro das redes sociais, de resposta a essa mesma cultura. Despentes aborda o aspeto indizível da violação, a dificuldade da vítima de reportar o caso, ou a impunidade do agressor e a recusa em admitir que as suas ações são violações, disfarçadas de pequenas agressões, deslizes ou uma simples falha em entender a falta de consentimento da mulher. É aqui que Despentes se alinha com Camille Paglia, cuja concepção da violação como o perigo possível que a mulher incorre ao invadir e ocupar o espaço público masculino se revela extremamente problemática. É necessário desviar o foco da violação da mulher para o homem, ou seja, implicar que é o homem o sujeito da ação que leva à violação, não a mulher (e ainda explorar a violação como crime apenas contra mulheres, e particularmente feminino, mas também existente, por exemplo, contra homens homossexuais ou indíviduos trans*, entre outras categorias). Se em momentos como este Teoria King Kong faz levantar a sobrancelha e pede que seja questionado, noutros momentos Despentes relembra-nos, de forma incisiva e certeira, que a sexualidade, na forma como está inscrita na comunidade e na sociedade, é baseada na violação, algo sustentado pelas inúmeras representações na arte de violações de mulheres, desde a Grécia Antiga.
É de referir ainda a tradução do texto de Luís Leitão e a forma como este não perdeu a força ou aspereza do texto original e da fluidez que o tradutor lhe conferiu, mantendo o registo de manifesto punk. Se Teoria King Kong terá uma repercussão tão forte como outros textos basilares dos estudos de género será difícil dizer. O texto, de 2006, só foi editado em Portugal em 2016 e a sua inclusão em programas curriculares não parece para breve, sendo Despentes uma espécie de enfant terrible do pós punk, que ultimamente ganhou mais notoriedade com a série Vernon Subutex. Como acontece com qualquer texto que se dedique a questões de género, Teoria King Kong oscila entre a contradição e a controvérsia, sendo ora caótico e essencialista, ora informado e muito pertinente. Por ser isso tudo, é merecedor de destaque e de análise, de uma leitura cuidadosa e comparativa e também de alguma reflexão sobre as experiências múltiplas de Despentes, certamente interessantes mas talvez mais adequadas a um diário do que a um texto que se apresenta uma espécie de teoria.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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