Não é possível fazer uma biografia de D. Teresa, mãe do primeiro rei de Portugal, mas Luís Carlos Amaral e Mário Jorge Barroca escreveram uma. A origem da impossibilidade não carece de muita imaginação, mas os autores explicam como ninguém mais poderia – «os dados disponíveis são muito lacunares. Resumem-se a pouco mais de sete dezenas de documentos que quase só transmitem informações sobre a sua actuação política e governativa, ou seja, pública, e mesmo esta em relação a questões muito particulares» (p.9). Não terá movido os autores a teimosia – se assim fosse, havia que agradecer o resultado admirável de tal pertinácia –, mas o rigor, a definição clara de objectivos e um trabalho de enorme persistência, aplicados a uma vontade que se adivinha de escalar o colosso. É normal que nenhum destes predicados nos digam muito, porque não estamos especialmente habituados a eles. Em tempos mais recentes, só muito devagar, demasiado, a biografia vai deixando de ser uma quimera, ou aquela raríssima aparição, que já foi. No entanto, um livro como este bem pode encher-nos de esperança – ou deixar-nos perante o copo meio vazio. Ainda um dia, talvez esse género abandonado ganhe o fulgor que merece, e os leitores que totalmente se justificariam.
Esta biografia da mãe de Afonso Henriques não é um exercício de imaginação, nem um romanesco conjunto de possibilidades, articuladas por qualquer compulsão desesperada de compor um retrato custe o que custar. Uma vez que as coisas são como são, e os autores não têm veia fantasista (dir-se-ia que felizmente, deste lado), aquilo a que o leitor tem direito é um livro de História, que esquematiza a biografia possível de uma condessa que, no século XII, deteve, ao longo de mais de três décadas, o poder sobre um território que, com ajustes, viria a ser o de Portugal. Neste livro, o carácter esboçado da faceta mais claramente biográfica da personagem histórica advém, repete-se, da escassez, quase inexistência de fontes documentais que especifiquem o carácter – quanto mais as circunstâncias miudamente biográficas de D. Teresa. Não é por acaso que as primeiras palavras dos autores são, precisamente, estas: «O texto que vão ler de seguida não é uma biografia.» (p.9) Porque, conforme se deve começar a perceber, não o é no sentido mais estrito do termo, mas é-o numa acepção mais lata e, sobretudo, nessa feição histórica, científica e investigativa que caracteriza todo este livro. Assim sendo, especifique-se.
Trata-se de uma reconstitução razoável e sólida – tanto quanto possível – do que é fragmentário e dubitativo. A base robusta de documentação é um fundamento e uma garantia. O procedimento adoptado pelos estudiosos consiste, fundamentalmente, em apoiarem-se no que, ao contrário da própria figura da condessa, é verificável e suficientemente seguro. No caso, a genealogia de D. Afonso Henriques pelos dois lados da progenitura: o de D. Henrique e o de D. Teresa. Tal implica concatenar um impressionante conjunto de informações e vistoriar inúmeras fontes e matérias. Ou seja, para pôr as coisas de um modo ironicamente simplista, o lado «francês» e o lado «espanhol» da estirpe do primeiro Rei de Portugal. Não se esqueçam, nem por nada, as aspas, pois trata-se de duas realidades, geográficas e políticas (Espanha e França) totalmente inexistentes, ou nem sequer em génese, naquele tempo. Falaremos, com mais propriedade, da casa de Borgonha e dos domínios pertencentes a Leão e a Castela. Mas fazem mais os historiadores, pois não estão cingidos à linhagem de D. Henrique e D. Teresa, mas alargam a sua exposição a D. Urraca e D. Raimundo. Um processo que, se não obtivesse, para nós, leitores não especialistas, resultados mais proveitosos (não é o caso; trata-se de um pobre artifício retórico), nos permitiria, no mínimo, ficar a saber que Henrique e Raimundo não eram propriamente primos, como se aprendia na escola (?), mas algo um pouco mais distante, ainda que não exclua a ideia de parentela: «os bisavós (…) eram os irmãos; e os avós (…) eram primos direitos» (p.51). Este tipo de metodologia activa uma espécie de fascinante efeito de dominó. Ao historiar a dupla genealogia de Afonso Henriques, os autores têm de mapear o território histórico a que se referem, algo que lhes dá oportunidade de recuarem até à formação ou consolidação das realidades geográfico-políticas de Leão e Castela, dos ajustes, avanços e recuos na definição de limites. Um labirinto de informações que Luís Carlos Amaral e Jorge Barroca tratam de forma sistemática e inteligível, circunstanciada mas harmoniosa.
É assim que ficamos a perceber que a vinda dos «franceses» para «Portugal» surgia integrada num processo tremendamente vasto. Por outro lado, percebe-se perfeitamente que, nem D. Teresa era uma simples filha natural (os pais seriam mesmo aparentados, segundo alguns historiadores), nem o seu famoso amante, Fernando Peres de Trava, era qualquer desclassificado facínora, arrivista em busca de ascenção social trazida pelo «trono». Távora era, pelo contrário, muito próximo do Rei de Castela, senão pelo sangue, ao menos pelas disposições e arranjos da vida familiar (o seu pai foi tutor do filho do Rei, o futuro Afonso VII). Aliás, quando muito, a relação, a ser por interesse (não era, ao que parece, o caso), seria de parte a parte – «o apoio dos Travas proporcionava[-lhe] [a D. Teresa] maior capacidade para enfrentar D. Urraca» (p.223). Abrindo o espectro, perante este «cenário histórico de extraordinária complexidade» (p.77), no encalço das grandes panorâmicas, um fenómeno como a Reconquista é pesado e reequacionado com toda a cautela, meditando, questionando o lugar-comum, a instrumentalização, tudo o que possa deturpar o sentido que se acredita ter sido o de tão complexos processos.
Pormenores como o uso de nomes próprios com grafia evocativa do tempo – «regina dompna Tharasia» (p.61) – não constituem curiosidades avulsas, mas informações que completam um panorama que, desde o início, sabíamos que seria lacunar – mas que o é menos graças a essas presenças. De resto, além dos variados extratextos (reproduções de quadros, estátuas, edifícios, túmulos, documentos, numismática) que acompanham Teresa, o último quarto do livro é preenchido por uma secção de «Anexos», que contempla crónicas e outros documentos, cronologias e relações genealógicos – materiais que fornecem um apoio inestimável para um conhecimento ainda mais consolidado da personagem histórica e do momento em que ela viveu.
Deste modo, Luís Carlos Amaral e Mário Jorge Barroca fazem mais pela figura de D. Teresa do que faria uma escrita aparentemente mais «livre», que tivesse prescindido da base documental. O que se possa perder em arejamento e leveza (ligeireza?), ganha-se com o peso fiável da informação erudita e contrabalançada com clareza na apresentação. Porque, sem deixar de ser acessível ao leitor não especializado, Teresa – A Condessa Rainha não abdica, nem do rigor, nem da exigência.
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