No poema Laocoonte (Laocoonte, rimas várias, andamentos graves), Vasco Graça Moura falava da famosa estátua, vendo nela uma metáfora para a arte: “só no tempo de homero é que o mundo /cabia nalguns versos. depois deixou de haver /a mesma coincidência fulgurante / que fazia o real entrar pelas palavras dentro //numa cadência inaugural do som e do sentido /a martelar a chapa dúctil da memória /na bigorna sonora de ásperos timbres.” Se escolhemos estes versos para introduzir The Great Tamer, de Dimitris Papaioannou, não é de todo para o aproximar do tom melancólico que revemos na poesia de Graça Moura (muito embora, como diversos críticos já notaram, essa melancolia seja mais reativa do que passiva, contas que não entram aqui). Trata-se antes de tentar verbalizar a amplitude da arte de Papaionnou, ou, perante essa impossibilidade, recorrer às palavras dos poetas, forma mais apurada de falhar essa aproximação.
Assistir a um espetáculo de Papaioannou é ter a sensação de que existe a “coincidência fulgurante” de que falava Graça Moura, de que tudo pode caber numa obra de arte e, talvez por isso, permaneçamos no terreno do indizível. Olhando o percurso do artista (foi aluno do pintor grego Yannis Tsarouchis, por exemplo), facilmente se perceberá que a sua formação tem uma influência decisiva para o gesto de reescrita presente nas suas obras.
The Great Tamer é um espetáculo que se inscreve na linha que Papaioannou tem vindo a explorar desde os anos 90, com, por exemplo, o grandioso Medea (1993), 2 (2006), Nowhere (2009), Still Life (2014, com uma passagem inesquecível pelo Theatro Circo, em Braga, 2016). Neste sentido, The Great Tamer repisa caminhos explorados, por exemplo, em Still Life: o gesto e as suas repetições propõem constantes variações, releituras do corpo. Há um trabalho de Sísifo entre cada corpo, entre cada movimento, espreita-se a repetição, como se o corpo fosse citação. Esta reiteração de gestos e formas para as variações do corpo ao longo da história da arte, é pautada por uma cadência delicada, evocativa dos ventos de Botticelli, que evolui até ao ritmo frenético do corpo crístico, na referência a El Greco.
Insistindo na metáfora da Arte, na perpétua iteração do acto criativo e do seu resultado, o corpo é aqui lido no sentido plural, e a questão identitária (pessoal) dilui-se, ou melhor, engendra uma correspondência colectiva e cultural através da identificação dos intertextos, que nos surgem como flashes. O corpo, tão helénico, atravessa os séculos e o espaço do palco: entra, sai, escava e (re)forma-se. As referências são extensas e nunca usadas gratuitamente, pois no manto epidérmico estendido por Papaioannou, o próprio palco é também pleno de fisicalidade e citação: devora e é devorado, como na referência por demais evidente a Goya, Saturno devorando a um hijo (1819). Mas o palimpsesto é extensíssimo e, a todos os níveis, notável. Além de Goya, Botticelli, El Greco, Rembrandt e Kounellis concorrem para a construção deste organismo simultaneamente plural e uno. trajetórias díspares que fazem constelar uma ideia central: o corpo artístico.
Papaioannou é, como todos os grandes artistas, um domador ou, recuperando o poema de Graça Moura, “martelar a chapa dúctil da memória”. Um domador de tempo e de formas, que usa e reutiliza para pôr em movimento os seus “laocoontes”. A arte de Papaioannou, a cada espetáculo, faz ecoar as palavras de Helder: “Arte medonha da paixão. / Um poro monstruoso que respira mundo”.
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