Tita no País das Maravilhas, a performance de Tita Maravilha, apresentada no dia 28 de Outubro na Biblioteca de Marvila, foi uma estreia no I Festival Eufémia, decorrido entre 26 e 31 de Outubro de 2021. Esta performance resultou numa clara evidência de alguns temas sustentados pela organização do festival, levantando, em particular, questões ligadas à construção da identidade, identidade de género e à discriminação.
Entrámos no auditório onde Tita se encontrava parada e já em cena, num estranho ambiente híbrido, misto de psicadelismo futurista e Natureza. Tita Maravilha e a sua equipa, bem coordenada e cooperante, montaram o cenário ideal do País das Maravilhas, projectando na parede, ao fundo, o filme clássico de animação infantil, com efeitos acessórios, como se de jogo electrónico se tratasse. Entre toda uma panóplia de objectos inesperados, espalhados pelo chão em raras combinações, viam-se plantas naturais e ventoinhas que Tita abria e fechava em continuo ritual.
O palco era um espaço de exploração em que tudo parecia amovível e mutável, como o é o corpo. E o País das Maravilhas revelava-se o lugar da mudança psicofísica, da transição de género que se impõe ao corpo vivo e à mente que o habita, um lugar em que o desejo de beleza anima as emoções que trespassam o corpo. Tita movimentava-se de forma pausada e consciente, exprimindo-se em gestos, frases e sons minimalistas-repetitivos, em loop, mudando constantemente a sua indumentária até exibir os seus seios firmes, como conquista e sinal de integração da sua identidade. Quando parava em frente à ventoinha, os cabelos esvoaçavam e parecia entrar em transe, como se algo de muito intenso estivesse a acontecer no seu intimo, uma espécie de transição decorrente dessa possessão.
A seu lado, dois ecrãs no chão projectavam imagens dos implantes das suas mamas, em recuperação, e intestinos em movimentos de fluxo e refluxo. “Que lugar esquisito para uma festa!” Também o corpo se mostra um lugar estranho ao entrar num território desconhecido em que diferentes possibilidades se lançam sobre nós e se abrem a um outro modo de ser. Não escolhemos o corpo com que nascemos, mas podemos escolher o que somos e o que queremos fazer ao corpo que temos.
Tita escolheu duplamente: ser mulher-trans-travesti e ser um corpo político. E o País das Maravilhas é esse lugar onde é permitido ser-se autêntico consigo mesmo, ser-se por inteiro, descobrindo-se como uma novidade. Mas essa é uma aventura arriscada, pois quem procura a sua verdade pode tornar-se alguém que diverge da norma, um dissidente. E divergir cria isolamento por discriminação dos demais. Escolher ser um corpo político implica querer quebrar esse silenciamento para chegar a um espaço social, comum, e afirmar a sua diferença.
Ao resgatar a sua identidade de género neste País das Maravilhas, Tita demostrou uma forma de Ativismo contra a discriminação e proclamou a mulher-trans como potência criadora, retirando-a da marginalidade e colocando-a no centro do debate, atitude que ela própria denomina de Artivismo (Ativismo na Arte). Neste contexto, a performance revela-se um acto de celebração, a arena onde se dança a beleza. Não uma beleza pré-estabelecida, sem escolha, mas uma beleza possível, acessível e subversiva.
Tita mostrou-se uma força bruta da Natureza, uma artista com uma forte mensagem política e de grande atitude.
Ficha Técnica
Concepção e Performance: Tita Maravilha
Assistência Dramatúrgica: Jaja Rolim
Desenho de Som: Cigarra
Desenho de Luz: Luisa L’Abbate
Direção Audiovisual: Gadutra
Foto © Gadutra
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