Fomos ao D. Maria II ver Top Girls, de Caryl Churchill, satisfeitos pela retoma das atividades culturais e com a expetativa de um bom espetáculo dado que, desde logo, o elenco de sete atrizes prometia.
À mesa, em convívio, reúnem-se extraordinárias mulheres reais e ficcionais que, em épocas diversas, foram além do seu tempo, desafiaram convenções e, com coragem ou resiliência, deram ao mundo um olhar diferente sobre o papel da mulher na sociedade, secularmente relegado ao servilismo.
Isabella Bird (Sílvia Filipe), viajante, exploradora, na época vitoriana; Papisa Joana (Alice Azevedo) que, disfarçada de homem, chefiou a Igreja Católica no séc. IX; Nijo, (Jani Zhao) dama educada para ser concubina do Imperador do Japão no séc. XIII; Gret (Nádia Yracema), personagem de um quadro de Brueghel que enfrentou com um exército de mulheres os demónios no inferno; Griselda (Beatriz Brás) personagem do conto X do Decameron de Boccaccio e Marlene (Sandra Faleiro), a empresária contemporânea de sucesso, juntas debaixo de um simbólico candeeiro zepelim, falam das suas vidas, dos filhos perdidos e mortos, do seu olhar sobre o mundo do homem e representam, cada uma, um estereótipo de mulher.
Sendo uma peça claramente feminista, não deixa porém de, quase veladamente, abordar a “culpa” da própria mulher neste processo e o preço da sua transformação: o que foi necessário para chegarmos à Marlene? E como é Marlene em relação às outras mulheres? Como sobrevive a mulher sem deixar de o ser?
Paralelamente, vamo-nos dando conta do que foi a vida de Marlene, da sua irmã Joyce (Sílvia Filipe) e da jovem Angie (Sara Carinhas), do que ficou para trás, dos ganhos e perdas de quem parte e de quem fica, de quem arrisca e de quem se submete. A cruel gestão do tempo, a ausência do tradicional núcleo familiar, os filhos criados sem as tradicionais referências e o assustador futuro para quem nasce e tem de crescer e afirmar-se como mulher.
Na empresa de Marlene, misturam-se mais estereótipos que nos são cruelmente familiares e que, representando mulheres ativas no mundo contemporâneo do trabalho, remetem-nos para o que foram séculos de uma evolução de mentalidades ainda em curso: Win (Jani Zaho) a amante, Nell (Beatriz Brás) a promíscua, Kit (Nádia Yracema) uma jovem sem curriculum, Louise (Nádia Yracema) uma mulher a quem nunca foi dado o devido valor, a Sr.ª Kidd (Sílvia Filipe) esposa tradicional que apela pelo esposo e, a silenciosa empregada de mesa (Sara Carinhas) a trabalhar em estado de avançada gravidez. O feminismo e o capitalismo face a face, em modo nu, realista e algo cruel. A competição feroz num mundo pautado pelos interesses do mercado no qual, para se chegar ao topo, continua a ser difícil ser mulher.
Sete grandes atrizes representam 16 personagens. A peça é estupenda, são 2 horas e 15 minutos de intensa representação que passam num ápice. No final brindam-nos com um momento muito alto de representação: o encontro de Joyce e Marlene, para nós o momento mais “top” destas “Top Girls”. Muito bom!
Ficha Técnica
texto Caryl Churchill
direção Cristina Carvalhal
tradução Joana Frazão
com Alice Azevedo, Beatriz Brás, Jani Zhao, Nádia Yracema, Sandra Faleiro, Sara Carinhas, Sílvia Filipe
música Sérgio Delgado
cenário e figurinos Nuno Carinhas
desenho de luz Rui Monteiro
assistente de encenação Leonor Buescu
assistente de cenário e figurinos Ana Vaz
produção executiva Bruno Reis, Sofia Bernardo
produção Causas Comuns
coprodução Teatro Nacional D. Maria II
apoio Junta de Freguesia de Arroios
M/14
duração 2h15
Foto © Filipe Ferreira
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