Torto Arado é uma história comovente, contada no feminino, de duas irmãs – Bibiana e Belonísia – que uma travessura de crianças une numa relação de profundo conhecimento e dependência. A escrita de Itamar Vieira Junior é suave, quase cantada, melodia que respeita a beleza das imagens e o som das palavras, evocando a vida de descendentes de escravos, numa fazenda onde as certezas se resumem ao trabalho diário e ao enterro no cemitério da Viração.
Filhas de Zeca Chapéu Grande, homem trabalhador e respeitado, convivem desde cedo com a magia de um pai que trata os enfermos e dá corpo aos encantados nas cerimónias de jarê. Na fazenda de Água Negra, os espíritos convivem com os vivos, por vezes tomando os seus corpos, cavalgando-os, perpetuando a história dos antepassados, homens e mulheres reais cujas dores e destinos, forças e desejos são a essência da verdadeira História de um povo escravo que semeava terras alheias em troca da sobrevivência e de casas de barro.
«O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade.».
As duas irmãs, uma sonho a outra terra, uma com pés-de-vento a outra com pés de raízes profundas, são mulheres fortes que, cumprindo destinos diferentes, traçam a semente da luta pela liberdade de um povo e pela dignidade das mulheres.
Com a partida de Bibiana, Belonísia perde a sua companhia e sobretudo a sua voz, entregue à vida de mulher adulta e à companhia de um homem que apenas representa trabalho e mudo desgosto. Dedica-se por inteiro ao cultivo, ao arado e à defesa dos mais fracos, como Maria Cabocla, mulher violentada por um marido bêbedo, com o medo nos olhos e o desamparo no corpo. Belonísia não cede, tem nas veias o sangue de Donana, sua avó, e na trouxa a faca com cabo de marfim. Ela é aquela «que desafiava à força o que achavam ser privilégio dos homens.»
O que se pode tirar a quem não tem nada? A Bibiana tiram Severo, primo, companheiro, pai dos seus filhos, defensor dos direitos de um povo ao qual, após a abolição da escravatura, nada mais restara que uma longa e permanente peregrinação em busca de um lugar onde pudessem assentar. Mas na perda dão-lhe razão para falar, para interpelar os moradores conformados, no seu corpo abre-se espaço à morada de uma velha encantada: Santa Rita Pescadeira, que atravessou «o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo.»
A semente dos direitos e da liberdade plantada por Severo, deixou uma árvore de profundas raízes, a árvore que é Belonísia, Salu, Crispiana e Crispiana, todos descendentes e moradores da fazenda de Água Negra, conhecedores dos mistérios dos encantados, dos espíritos antigos que querem agora substituir pelo professar de uma religião.
Torto Arado conduz o leitor com mestria ao conhecimento de personagens únicas, ao espanto devido por quem do nada faz alimento, da terra faz casa e das águas mulheres-peixe. Forçosamente obriga-nos a acolher, com modéstia, a sabedoria de quem contempla e percebe o som da natureza e o diz de forma muito bela.
«o vento não sopra, é o próprio sopro.»
Da voz de Bibiana e da mudez de Belonísia, cujo timbre sempre foi o som do mundo, fala-nos Itamar Vieira Junior neste romance que retrata em poesia a verdade do sofrimento e crueldade humanas e a resiliência digna de quem, derrotado, terminará por vencer.
«Sobre a terra há de viver sempre o mais forte.».
Deleitem-se!
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