O espetáculo Trattoria Pirandello, com encenação Simão do Vale Africano, em palco entre os dias 15 e 25 de Novembro no Teatro Carlos Alberto, no Porto, conjuga três obras – que têm em comum o facto de serem peças de um único ato – do escritor e dramaturgo italiano Luigi Pirandello, nascido na Sicília em 1867 e falecido em Roma em 1936, premiado com o Nobel da Literatura dois anos antes do seu desaparecimento.
A primeira, O Homem Com a Flor Na Boca (cuja data de redação se desconhece, mas que estreou em Roma, em 1926), ainda que escrita sob a estrutura de uma cena teatral é, na verdade, um pequeno conto, adaptação da novela «Caffé Notturno» (1918), reeditada no mesmo ano sob o título «La Morte Adosso». Poderíamos descrevê-la sucintamente como um diálogo tardio entre dois cavalheiros numa noite de Verão, que progressivamente se transforma num monólogo de um homem, cuja obsessão pela observação do prosaico serve de fuga ao confronto com o vazio que tanto teme e o faz fugir de casa e da mulher e, se possível fosse, de um destino inevitável.
O texto é bem exemplificativo do estilo de Pirandello: tendo como ponto de partida detalhes quotidianos que passam despercebidos à maior parte das pessoas – no caso, o modo como os empregados das lojas da cidade embrulham as compras dos fregueses ou a disposição das cadeiras (e as próprias cadeiras) da sala de espera dos médicos “de renome” – a personagem O Homem Com a Flor Na Boca expõe despudoradamente as incongruências da vida social e os comportamentos comezinhos, que transmutam o banalíssimo numa aparente grandiosidade, que as coisas, na crua azáfama das cidades, não logram ter.
É notável o modo como o dramaturgo, por meio desta personagem, descreve tudo, desde o “papel duplo, vermelho […] tão liso que até apetece encostar-lhe a cara para sentir aquela carícia fresca”, aos gestos medidos dos lojistas que, “com ágil graciosidade” fazem as dobras e puxam certeira medida do fio para atar o embrulho, “tão rapidamente” que o cliente não tem “sequer tempo para admirar aquela arte”. Igualmente notável é a crítica que vai ínsita na narração das salas dos médicos a quem não faltam pacientes, desde “aquelas cadeiras estofadas, por norma desemparelhadas […]” que “[s]ão coisas compradas ao calhas, coisas de revenda”, à justa medida de um ambiente discreto, decente, sóbrio, por oposição à “sala de visitas bem diferente, rica, bela” que “o senhor doutor tem para si próprio, para as amigas da sua senhora”, diferenças estas que os pacientes não notam, “absorvidos que estão pelo seu mal. […] Pensam e não veem”.
Porém, O Homem Com a Flor Na Boca tudo pensa e tudo vê, porque se deixa conduzir pela imaginação, através da qual se “pega” à vida – não à dele nem das pessoas que conhece, mas à vida dos estranhos – “[c]omo uma trepadeira se pega às barras de uma cancela”. Ele mesmo, revelando ao espectador o estilo de Pirandello: “apoiando-se nos mais pequenos pormenores descobertos neste e naquele”, “na vida dos estranhos”, através da qual a sua “imaginação pode trabalhar livremente”, confessa: “Eu digo-lhe que preciso de me agarrar com a imaginação à vida dos outros, mas assim, sem prazer, sem sequer me interessar, pelo contrário… pelo contrário… para sentir o seu desgosto, para julgar a vida vã e choca, a tal ponto que deixe realmente de importar a quem quer que seja pôr-lhe fim”.
Esta sequência da interpretação é particularmente bem conseguida por Simão do Vale Africano que, com uma construção certeira da personagem, personifica – primeiro – a delicadeza da feitura de um embrulho, – depois – a quasi indignação pelo refugo mobiliário reservado aos pacientes mortificados pelas suas doenças, pelo seu “mal secreto”, que deixa transparecer como uma afronta que urge denunciar. E subtilmente abre a porta para o desenlace da peça.
O cenário, tal como foi concebido por Bruno Capucho, talvez não pudesse afastar-se mais do descrito pelo autor. Com efeito, o café pobre e lúgubre, com cadeiras de passeio, imaginado por Pirandello, dá lugar a cadeiras e mesas de cunho futurista, reforçado pelo facto de os copos serem de cores diferentes e fluorescentes, aspeto que o desenho de luz de Rui M. Simão faz questão de realçar. Os figurinos de Bernardo Monteiro, que opta por vestir as personagens com dois fatos de cores vívidas – um bordeaux e outro amarelo-caril – seguem a mesma intenção de impressão ao quadro de um ambiente notoriamente eletrizante. Estes três componentes (cenografia, luz e figurinos) pareceram-nos os mais perturbadores desta versão de «O Homem Com a Flor Na Boca»: neles há uma autêntica reconcepção do concebido por Pirandello, de que resulta a dispersão do espectador, dividido entre a concentração que o texto e a personagem central exigem e o que demais sucede em palco.
Sonho (ou talvez não), a segunda peça apresentada, foi escrita entre 1928 e 1929 e estreou em Lisboa em 1931, com tradução portuguesa de Caetano de Abreu Beirão, encenação de Amélia Rey-Colaço e produção da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. A história foca uma personagem feminina, que pode ser vista de dois modos distintos: como uma mulher que trai por descontentamento, aborrecimento ou mesmo desdém; ou como uma mulher interesseira que usa a paixão, ou melhor, “expedientes de todos os tipos” – como lhe diz sem complacências o homem do sonho – para manter o seu nível de vida, os seus gostos extravagantes por joias, os seus “desejos mais dispendiosos”.
A peça desdobra-se à volta de um sonho que, podemos dizê-lo, atormenta A Jovem Senhora, já que a confronta com acusações de deslealdade proferidas pelo Homem de Fraque, que mais não é do que o seu marido: “nem uma mulher pode obrigar um homem, nem um homem uma mulher a dar resposta a um amor que já não se sinta. Mas então é preciso ter a franqueza de dizer: «Eu já não te amo»”. Subjacente a todo o ato está a ideia de desconfiança, de ameaça, de desonestidade, o olhar turvo e o tom censório d´O Homem de Fraque. O texto da peça não é simpático para com uma mulher que, como A Jovem Senhora, confessa ter sentido raiva pelo facto de o marido esperar que ela, só por amá-lo, “já não devesse desejar mais nada”. Sob a pressão do confronto, admite que, ao insinuar o seu desejo por um colar de pérolas, que sabia de antemão não estar ao alcance das posses do marido, “quis ser cruel”. A Jovem Senhora acaba por despertar do sonho, aflita, com a real sensação de sufoco na garganta, que momentos antes estava envolta pelas mãos desesperadas do marido.
É a partir daqui que se compreende a adversativa do título da peça. Quando o criado lhe entrega um embrulho, A Jovem Senhora assume o seu contentamento para, logo em seguida, recordando vividamente o sobressalto do sonho, procurar esconder o embrulho numa prateleira, como que buscando resistir-lhe, ou talvez não, “talvez não” – como no título da peça –, porque logo a curiosidade se torna irresistível tentação e, nervosamente, o pacotinho é aberto, o fio apertado com ambas as mãos contra o peito, posto em redor do pescoço, observado ao espelho acompanhado de uma expressão de genuína felicidade. O desenlace não revelamos, até porque a dúvida sobre a concretização do sonho está no seu cerne.
Para todas estas emoções, em muito contribuiu a excelente representação de Joana Africano, que construiu solidamente uma personagem dissimulada, que passa por uma grande paleta sentimental alcançada com rigor digno de nota. É justo dizer que Joana Africano afasta competentemente a personagem de uma certa superficialidade em que poderia incorrer. Esta peça é, sem sombra de dúvida, a sequência mais desafiadora do espetáculo, a que exige mais atenção aos detalhes, e o encenador não esconde a importância que lhes dá, principalmente aos interpretativos. A Jovem Senhora está escorada, necessariamente, n´O Homem de Fraque, que resulta da séria composição que lhe imprimiu Jorge Mota. Nota positiva também para a (arrojada) cenografia, a sonografia (adequadíssima sequência de piano que comporta para a cena a dramaticidade pretendida) e a luminotécnia, num quadro que a encenação optou por não montar à boca de cena (ao invés do que fez nas outras peças que compõem a «Trattoria Pirandello»), talvez para que o espectador nunca perca de vista de que quase todo o ato se trata de um sonho (ou talvez não).
A terceira peça, Cecè, redigida em 1911 e estreada em Roma no ano seguinte, tem início com um estrépito, que anuncia ao espectador que o ritmo acaba de mudar. Com efeito, faz-se a transição para uma comédia, que relata os artifícios de um jovem italiano que arquiteta um plano para não sair a perder de uma situação delicada em que ele mesmo se colocou. Tal como na peça anterior, na mesma situação junta-se uma mulher, dinheiro e engano, mas Cecè, diminutivo de Cesare – que opera como uma alcunha por que sempre são conhecidos os enganadores galantes – não tem paralelo com nenhuma das personagens apresentadas anteriormente, o que fará toda a diferença.
As restantes personagens são Squatriglia, um comendador e construtor de obras públicas, cujo rebentamento de uma mina deixou sem um olho, agora coberto por um transtornante excerto de pele, e Nada, uma sofisticada jovem de 22 anos, ou talvez um pouco mais, a quem, para deleite do espectador, depressa “o pé resvala para a chinela”. Squatriglia é um pouco rude e desajeitado, devedor a Cèce de um favor relacionado com o Ministro das Obras Públicas. Nada é a contraparte de um affair, a que Cèce deu início na sequência de uma aposta com amigos e a quem ele é devedor de uma magnífica quantia (não esqueçamos que a ação decorre em Julho de 1913) que, supõe-se, o conquistador assinou como contrapartida por uma alteração de estado definitiva, que a sua volúpia impôs à jovem e que ele tenta explicar ao amigo de forma rebuscada e cómica: “Difícil é descer certos escadotes, depois de os teres subido… Quem sobe carregado, desce leve; mas quem sobe leve, meu amigo… Vi a coisa mal parada, lá está. E para sair, fiz uma estupidez da qual sempre soube precaver-me. Consegui que ela aceitasse, por falta de alternativa, mas fazendo cair do céu, três letras de duas mil liras cada…”.
O seu propósito é, pois, rapidamente reaver aquelas três letras, aquelas seis mil liras e, para isso, engendrará um plano baseado em mentiras encadeadas, que porá na boca do comendador para levar Nada a devolver as letras, convencida que não poderiam ser cobradas. O preço a pagar, ao invés de dinheiro, será levar pelas costas com um sem número de qualificativos negativos com que o empreiteiro o apelidará perante a dama. Em suma, um bom, um excelente negócio!
A encenação logrou conferir às interpretações a cadência certeira de um turbilhão de palavras e movimentações em palco, com muito ruído causado por quedas e tacões, que mal dão tempo ao expectador para outra coisa que não sorver cada instante da peça. Os três atores construíram as suas personagens tendo como foco este indispensável redemoinho, que perpassa todo o texto de Pirandello. Três construções, por isso, bem conseguidas e articuladas, a merecer nota francamente positiva. A cenografia, com exclusão de um enorme pufe marroquino de cor negra onde todas as personagens caem com estrondo, é sóbria e elegante. Porém, nos figurinos voltamos a encontrar, como em O Homem Com a Flor Na Boca, fatos de cores inflamadas – um roxo e um coral – e muitos brilhantes, demasiadas lantejoulas na jaqueta de Nada, que veste uma peça de cada cor, resultando num vórtice algo excessivo, que acaba por roçar a agressividade visual. No entanto, não se veja nesta consideração uma crítica cortante. Afinal, não será essa também função da cenografia, da sonoplastia, dos figurinos e da própria encenação: a de nos apresentar perspetivas diversas e – por que não? – contrastantes das dos dramaturgos? A uma encenação não se pede que cative o espectador e o deixe ora pacificado, ora perturbado com a leitura que lhe é apresentada? Ao fazê-lo, o encenador expõe-se ao juízo do espectador, pois concede-lhe o poder de avaliar se o objetivo foi cumprido e a possibilidade de, da sua apreciação, retirar conclusões de e sobre o espetáculo.
Sobre o excelente trabalho de Simão do Vale Africano e da sua equipa (técnica e de atores) nesta «Trattoria Pirandello», deixámos aqui expressas algumas ideias, mas o que temos em mente é, mais do que tudo, acicatar o público a ir ao teatro assistir a este espetáculo e a fazer a sua avaliação do «menu» servido. Acreditamos que não volverá a casa com fome.
Foto © Susana Neves
Por defeito profissional, Maria de Deus Botelho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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