home Didascálias, TEATRO Trilogia da Juventude – Teatro Nacional D. Maria II (27/10/2018)

Trilogia da Juventude – Teatro Nacional D. Maria II (27/10/2018)

O frio tinha chegado a Lisboa e trouxera, agarrado, o Teatro Experimental do Porto (TEP) que, num assomo de juventude, se instalou no Teatro D. Maria IIGonçalo Amorim propõe uma trilogia:

  • O Grande Tratado de Encenação;
  • A Tecedeira que lia Zola;
  • Maioria Absoluta.

Na primeira peça do tríptico, o passaporte para a discussão e a utopia é a obra Pequeno Tratado de Encenação, escrita por António Pedro (um dos fundadores do TEP) em 1962, uma espécie de cartilha da representação com forte impacto no teatro português, mas apenas ao alcance de uma pequena elite burguesa.

A obra não só define o papel de encenador enquanto autor e transmissor de uma visão própria, como é mote para se discutir o papel da arte no processo de transformação de uma sociedade agrilhoada pelo fascismo.

Três jovens amigos no conforto de um sótão, vestido com uma única janela que faz a ligação ao mundo, um sofá abraçado a almofadas, e candeeiros que iluminam palavras, palavras lidas, repetidas, vividas, e livros, muitos livros (Marx, Sartre, Mao, Gorki, Steinbeck, Zola…). Une-os a ideia de como fazer a revolução e a mudança que querem fazer acontecer. Ou talvez o “socialismo” como “remédio para a falta de amor”.

O cenário, de madeira, repetir-se-á na trilogia e, simples, serve inteiramente o propósito do ambiente intimista, da primeira peça, como servirá as seguintes (uma casa pobre de burgueses convertidos em operários e da banda punk que ensaia a memória de uma revolução que sentem fracassada).

Ali estávamos nós a espiá-los, e caso não o soubéssemos, as personagens fazem questão de nos interpelar. Dizem-nos directamente ao que viemos, e que, sim, são fingidores, que afinal o teatro é isso… É? Não conseguem conclusões, nem consensos. Normal. E fazem-no com a ingenuidade de quem, entre uma língua de veado e um chá, questiona se (nós, os outros, ou talvez ele?) queremos a realidade retratada por arquétipos, para que seja mais facilmente apreendida, ou o real nu e cru, se queremos essa verdade ‘naturalista’, se somos essa tartaruga, que as personagens encarnam, que figura no sofá, esse símbolo da mudança que se deseja fazer acontecer.

Falamos do tema do espetáculo, mais que dos atores. Que desaire. É só por ser tão fluida, generosa, limpa e vigorosa a interpretação dos atores, tão certeira a encenação, que mesmo o pé partido de Catarina Gomes nada muda. Rir e sentir aquela juventude, aquela inquietação permanente, aquela vontade inabalável. Isto diz tudo, ou assim esperamos, sobre a qualidade da interpretação.

Em A tecedeira que lia Zola, as personagens falam connosco, algumas deixam-nos a dúvida sobre se estão dentro ou fora de cena, iniciam, recomeçam, interpelam, explicam através de uma analepse como chegaram àquela casa no Vale do Ave, para, na clandestinidade, substituírem a juventude burguesa prometida pela vida como operários. Naquela casa, com poucas idas ao café, se iniciam todas as disputas entre o pensamento e a realidade, entre os teóricos e as mudanças tangíveis na fábrica. São quatro: dois jovens burgueses a pensar na “revolução cultural”, um jovem da fábrica, operário, que a eles se junta, e uma outra jovem burguesa. São quatro utopias e distopias em confronto permanente.

Afinal as operárias não usam bata. Afinal isso de ter cara de burguês e de operário é só um disparate. Afinal é tudo mais difícil quando doem as costas depois de horas de trabalho. Afinal as paixões têm que ser reprimidas em nome da luta. Ou serão as paixões também uma face da luta? Afinal o tempo para ler entorpece naqueles dias, os olhos ficam cansados e o pensamento embrutecido. Afinal a luta é para agora, e quando é para acontecer, discutir palavra sim, palavra não, enquanto se prepara propaganda para multiplicar na policopiadora, tem que irritar o amigo operário (mesmo que ouça, incrédulo, mas paciente, As Vinhas da Ira, descritas em 60 segundos, pela burguesa inflamada e indignada). E como tudo é mais doloroso quando sentimos na pele. E como tudo é mais difícil quando o medo nos parece tolher o entusiasmo. E como tudo é mais duro quando as dificuldades entorpecem os nossos passos. A greve é urgente. As condições de trabalho são inaceitáveis. As jornadas impossíveis. E a greve vai acontecer. Mesmo se aparecer o tio, gordo e de bigode, do lado do patronato e se o medo do desemprego for, por isso, real e barrigudo. E a luta é tosca. Não há livro que ensine como fugir, como levar porrada, como enfrentar tudo por uma luta que fizeram sua, mas nunca o foi.

Germinal é uma das obras várias vezes referida na peça, em que Émile Zola retrata as duras condições de trabalho dos mineiros numa zona do Norte de França e a forma de organização política e sindical do proletariado. Note-se que, tal como aconteceu com três daqueles amigos, o escritor francês passou um período a trabalhar como mineiro para escrever a obra. Zola foi um dos maiores representantes do movimento literário naturalista, um ramo do realismo, que se opôs à corrente literária do romantismo, e pretendia retratar a realidade e a sociedade de forma objetiva, explorando problemas sociais como a pobreza e assumindo a transformação da sociedade como objetivo.

E lê-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como no primeiro espetáculo, como que a dizer quão simples parece ser o que se quer fazer e quão distante se está de o obter…

E que chegue o “dia inicial inteiro e limpo”. Aquele dia tão esperado e redentor. Como uma tartaruga. Como mãos suspensas em silêncio antes do black out final.

Maioria absoluta resgata a tartaruga. “Maioria absoluta é como uma tartaruga sem carapaça”. Tempos difíceis aqueles, em que a revolução parecia ter falhado. “O fim do mundo, para mim, é quando me partem o coração”.

Chegámos aos anos 90. Cavaco Silva instala a maioria absoluta na sala e apaga a revolução, deixa só a revolta, o lastro das privatizações, as propinas, as instituições de ensino privadas a fazer nascer o sonho de “ser alguém” e o matar o sonho a quem não tem, ou quem não entra à boleia de numerus clausus, o frenesim da sociedade de consumo agarrada ao capitalismo acolhe eventos megalómanos, enquanto se apunhala o Estado Social. Uma banda punk espera-nos, um trapézio pendurado, não fosse o limbo a garantia destes jovens desorientados, frenéticos, em busca da satisfação fácil, ou de uma espécie de salvação que lhes resgatasse a crença, que não matasse de vez as ideologias, que os fizesse acreditar que sim, esquerda e direita é diferente, implica escolhas diferentes. E entre um concerto punk e diálogos difusos, um frenesim confuso enche a sala de esgares e gritos, obscenidades, corpos que se misturam sem se sentirem. Não vemos pessoas, nem sequer personagens, só a miragem de alguma coisa que aconteceu. Uma sensação de opressão invade-nos, apesar de toda a liberdade que comanda aqueles corpos.

Saímos da sala sem perceber e levam-nos para perto de janelas de verdade, deixando o rabo à mostra na despedida. E assim nos dizem que estão fartos, depois de falarem das estrelas como uma espécie de esperança vã e distante.

“Maioria absoluta é uma tartaruga sem carapaça”.

Talvez, pela desesperança, este último seja o espetáculo mais vazio. Talvez seja este vazio que Gonçalo Amorim nos quer dar. Por isso esperamos que esta trilogia continue. Para guardar em pedaços de tempo mais juventudes que nos pertencem. Para nos lembrar de onde viemos, que lutas fizemos e que sociedade queremos. Ou, pelo menos, para nos lembrar se ainda queremos mudanças. Se ainda podemos fazer a revolução. Alguém acredita que andam a distribuir cravos em Lisboa? Ainda por cima são tão caros!, dizia-se, palavra vai, palavra vem, a dada altura. Pois é. Parece estranho, mas é verdade. Foi, é e ainda pode ser. E é sempre urgente. É sempre para agora.

Foto © José Caldeira

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