home Antologia, LITERATURA Tudo É Possível – Elizabeth Strout (Alfaguara, 2018)

Tudo É Possível – Elizabeth Strout (Alfaguara, 2018)

Elizabeth Strout é uma romancista estadunidense, com várias obras publicadas, das quais se destaca Olive Kitteridge, que lhe valeu um Prémio Pulitzer em 2009, transformado em minissérie pela HBO em 2015, tendo ainda recebido o Los Angeles Times Art Seidenbaum Award e o Chicago Tribune Heartland Prize com o seu primeiro romance Amy and Isabelle. Na sua mais recente obra Tudo é possível (editada em Portugal pela Alfaguara em 2018, com tradução por Rita Canas Mendes), galardoado com o Story Prize 2018, Strout conta nove pequenas histórias, interligadas, com relatos íntimos da vida comum, onde são postos a nu segredos de família, vergonhas inenarráveis, medos, invejas, traumas e fantasias.

O livro começa com a história de Tommy Guptill, dono de uma quinta de produção de leite destruída num incêndio. Em vez de se sentir despedaçado pela perda de seu lar e sustento, Guptill vê o incêndio como uma bênção, um sinal de Deus: «Não fazia parte da natureza de Tommy lamentar fosse o que fosse, e na noite do incêndio – por entre o seu medo galopante – compreendeu que tudo o que lhe importava neste mundo era a mulher e os filhos, e pensou que havia pessoas que passavam uma vida inteira sem o saber de um modo tão claro e constante como ele o sabia.»

Numa outra história (A teoria do polegar atingido), Strout entra no íntimo de um veterano da guerra do Vietname com stress pós-traumático, Charlie Macauley, casado com uma mulher que não suporta e com uma grande admiração pelo filho, que representa tudo aquilo que ele queria ser: «És decente e forte, e nada disso tem que ver comigo; mas desta a volta àquela infância que não foi um mar de rosas e tenho orgulho em ti, tenho admiração por ti. Charlie não conseguiu, sequer, proferir uma versão ténue daquele sentimento». Entre as suas ligações e relações extraconjugais, é traído pela prostituta por quem acredita estar apaixonado – nem mesmo o nome dela é real. Naquela noite, Charlie, o homem da «dor indizível», (como lhe chama Dottie, personagem de A Residencial de Dottie, uma outra história com ligações a esta), decide não voltar para casa e ficar na residencial que encontrou à beira da estrada, esperando que a dor acumulada de sua vida se liberte.

São histórias com um elevado peso dramático, contadas de uma forma leve e subtil, sobre alguns habitantes de Amgash, uma pequena aldeia situada no Illinois. Para quem leu o anterior romance da autora, O meu nome é Lucy Barton, grande parte destas personagens não são desconhecidas. Contudo é em Tudo é possível que elas ganham vida e se autonomizam da visão de Lucy Barton, aqui apenas mais uma das personagem, embora presente em quase todas as histórias, devido à publicação do seu novo livro, à venda na livraria da sua terra natal, o que gera toda a espécie de comentários das pessoas que a conheceram na infância, seja por desdém, inveja, pena ou admiração. Por entre a escrita de Strout, compreendemos cada personagem, o porquê das escolhas de vida e o peso da infância na idade adulta.

No capítulo Irmã, Lucy Barton regressa a Amgash dezassete anos depois, para estar com os irmãos Pete e Vicky. Após alguns diálogos de crispação e acusações entre Vicky e Lucy, os ânimos acalmam e, juntos, revivem acontecimentos duros durante a infância de pobreza extrema, e a crueldade por parte dos pais, obrigados a comer do caixote do lixo ou da sanita, quando deitavam a comida fora, ou proibidos de chorar, com severos castigos. «Chora tudo. Querida, chora tudo o que tiveres para chorar, não faz mal. Céus, vocês lembram-se de como nunca podíamos chorar?». Depois desta catarse, Lucy Barton cede perante estas lembranças e sofre um ataque de pânico e os irmãos, por fim, compreendem a atitude de distanciamento dela de Amgash. «Ela não é passada, Pete. Só não conseguiu suportar o regresso. Foi demasiado duro para ela – disse por fim Vicky, olhando directamente para a estrada.»

Nestas estórias, há ainda espaço para o reencontro entre mãe e filha que, outrora muito unidas, se vêem separadas, física e emocionalmente, pela incapacidade da filha perdoar a mãe por ter ido viver para Itália, com o seu amante italiano, bem mais novo do que ela. Em Mary do Mississipi, ao longo dos diálogos mãe-filha, conseguimos perceber o motivo para Mary Mumford ter deixado um casamento (apenas) ao fim de cinquenta e um anos. Ela «esperou até que as cinco raparigas tivessem crescido, esperou até recuperar do ataque de coração que teve quando descobriu a secretária com quem o seu marido tinha um caso há treze anos – treze anos com aquela mulher que era tão gorda -, depois esperou até recuperar do AVC que teve quando o marido encontrou as cartas do Paolo – há quase dez anos – oh, o que ele gritou, com cara vermelha, aquela veia horrível na têmpora, prestes a explodir, mas afinal explodiu nela, e supôs que isso fazia parte do casamento, ela ficar com as veias a explodir, e depois esperou que ele não morresse devido ao cancro no cérebro que surgiu logo após ela lhe ter dito que ia deixá-lo; então esperou e esperou, e o querido Paolo também esperou – e aqui estava ela.»

Strout retrata ainda factos relacionados com a sexualidade e o modo como ela é encarada pelos vários personagens. Dá-nos a conhecer o Ken Barton (pai de Pete, Vicky e Lucy), também traumatizado de guerra, que não controla a sua sexualidade.

No capítulo Moinhos ficamos a conhecer a intimidade de Patty Nicely. Não tinha sexo com o marido, Sebastian Hanston, devido a este ter sido vítima de abusos sexuais, repetidas vezes, por parte do padrasto «Na sua cama de casal davam as mãos e nunca iam além disso». Mas ela não se importava, porque ela própria tinha traumas sexuais desde que era criança, no dia em que chegou mais cedo a casa e ouviu os «os sons mais surpreendentes provenientes do quarto dos pais». Subiu e viu a mãe «montada no senhor Delaney – o professor de espanhol de Patty! -, os seios da sua mãe balouçavam e aquele homem estava a dar palmadas na sua mãe, agarrou-lhe no seio com a boca e a mãe gemia.» Já crescida, «Quando Patty começou a ir para os milharais com os rapazes da sua turma, e mesmo mais tarde, quando teve namorados a sério e fez aquilo com eles, a imagem da sua mãe, sem camisa nem soutien, com os seios a balouçar enquanto aquele homem agarrava um deles com a sua boca, esteve sempre presente…Não, Patty não conseguia suportar aquilo. A sua própria excitação provocava-lhe sempre uma vergonha terrível e assustadora». Esta memória de infância de Patty, que a envergonha da sua sexualidade, está também latente na sua irmã Linda, no capítulo Rachada, em que  deseja que o marido Jay desapareça, mas entretanto finge suportar os seus fétiches de voyeur e aceita as suas traições, tudo por uma vida que a catapultasse para «longe da imagem aterradora e permanente da mãe sozinha e ostracizada», que decidiu abandonar o marido após os acontecimentos referenciados por Patty.

Strout fala-nos, ainda, da vida de um pai que encobriu a sua homossexualidade até à morte, da vida de um travesti – Tomasina ou Tom, consoante as suas vestes – sendo ainda feita alusão, no capítulo Cegueira de neve, a relações incestuosas entre pai e filha.

Há um denominador comum nestes contos – a sobrevivência: a traumas de guerra, a traumas de infância, a acidentes, à pobreza extrema, à vergonha, a preconceitos. Strout leva-nos a encarar as suas personagens a partir do seu interior e é aí que nos apercebemos da vulnerabilidade do ser humano, das suas fragilidades e incertezas, da luta constante entre o presente e as lembranças do passado, entre a bondade e a crueldade das pessoas e, não raras vezes, através dos silêncios, uma voz mais alta que os próprios diálogos nos vários capítulos. É essencialmente um livro que traz ao de cima o desejo de todo o ser humano em ser compreendido e aceite pelos outros, apesar de todas as vicissitudes da vida, das opções tomadas, das diferentes classes sociais. «Somos todos uma trapalhada, Angelina, tentamos fazer o melhor que podemos, amamos de um modo imperfeito, Angelina, mas não faz mal».

Um livro simples e poderoso, que nos cativa com a vida das suas personagens e que, no fim, nos faz querer saber mais acerca do que vem a seguir: Abel morreu? Lucy conseguiu voltar a Amgash e escrever sobre a sua própria história? Patty redescobriu a sexualidade com Charlie? Linda conseguiu deixar o marido perverso? Perguntas que ficam por responder. Talvez Strout nos surpreenda num dos seus próximos romances, e regresse àquela pequena terra no Illinois, onde tudo é possível.

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