home Didascálias, TEATRO Turismo – Teatro Campo Alegre, 31/1/2020

Turismo – Teatro Campo Alegre, 31/1/2020

É cada vez mais raro encontrar escrita sobre temas urgentes e actuais por cá, e quando falamos de teatro, essa escassez é confrangedora. Falta de inspiração, de coragem ou mesmo de talento talvez a expliquem. Resignados, enchemos salas com os clássicos de Shakespeare e amigos, tantas vezes estropiados em encenações duvidosas para encaixarem à justa numa mensagem redundante similar a uma qualquer crítica social óbvia e inconsequente. E depois há ovação de pé, porque é Shakespeare e amigos. Sic transit gloria mundi. Este Turismo, escrito e encenado por Tiago Correia, procura agitar o marasmo virando o foco para um problema global e bem próximo do público que lotou o Teatro do Campo Alegre: a descaracterização dos grandes centros urbanos para acomodar o turismo, a gentrificação, para usar o palavrão já adoptado pelo léxico nacional. No papel, fá-lo com distinção, como aliás nos vem habituando, com um texto sólido e minucioso sobre três diferentes níveis de realidade social que se cruzam e intercalam durante três dias. Mas também na arte, o todo é a soma das partes e algumas insuficiências minaram o que poderia ser um espectáculo memorável.
A primeira cena é sintomática. Um polícia, um turista (jovem estrangeiro), uma rapariga e uma mulher que vive na rua cruzam-se. O turista e a rapariga falam em francês, o que faz sentido atendendo ao desenvolvimento e conclusão da cena, mas as falas não fluem, havendo um claro foco na correcção da linguagem em detrimento da expressividade, o que interfere com a cadência das interpretações. A mulher (Cláudia Lazaro), que comenta a cena fazendo as vezes do coro, desenha o enquadramento de uma cidade em mudança e espicaça o polícia, velho conhecido, mas de uma forma quase declamada, que não se coaduna com a personagem vivida e humilde que representa, acabando por prejudicar a própria mensagem veiculada. O polícia e a mulher confrontam-se, no que seria o ponto alto da cena, mas toda a brutalidade do trecho acaba por não ser tão pungente quanto o é no papel, já que a rispidez das palavras e acções simplesmente não transparece na fisicalidade e coreografia dos actores.
Mas são vários os pormenores de grande nível e visão na dramaturgia e encenação. Excelente trabalho do Francisco Lobo, com a ideia de, por cima da cena, projectar imagens ao vivo dos actores, em plano aproximado. Uma mais valia, porque apesar de desviar a atenção do palco, nunca é incómoda e complementa algumas cenas em que o elenco surge atrás de telas (cuja existência para separar diferentes planos de acção e níveis da cidade – o mais baixo na baixa da cidade, o mais alto nos arredores – faz sentido mas cria distanciamento com a acção), melhorando a visibilidade e a proximidade com o espectro emocional de cada desempenho, contribuindo assim para uma maior eficácia do todo dramático.
O investidor estrangeiro (um inspirado Paulo Lages), rouba as cenas em que surge, com destaque para as partilhadas com o polícia (José Eduardo Silva) na boca de cena, as melhores de toda a récita. Pelo despique entre intenções e mundos brutalmente opostos reflectido em cada movimento, postura e tom, pela inteligente iluminação (luz laranja intensa, com os actores em contraluz) e sonorização com ruído de fundo emulando a costa e as conversas paralelas (belo trabalho de Rui Monteiro e Teresa Antunes), pelo humor que o absurdo das palavras e acções induz sem condicionar, pelas declarações e interesses ocultos que constatam o que todos supomos acontecer, sem menosprezar a inteligência do público para entender a dimensão do que se está a passar em demasiadas cidades por este admirável Mundo novo fora.
O texto é certeiro. Retrata esta meia dúzia de vidas de um modo sagaz e humano, deixando margem aos actores para conduzirem as personagens e ao público para se integrar e inteirar do que vê, sem manipulações ou maniqueísmos, o que não significa que seja neutral ou ambíguo. O desenlace final da peça é a perfeita imagem do que sobra deste retrato duro: a melhor forma de julgarmos uma sociedade em determinado contexto é aferir como trata os seus elementos mais frágeis. (1) Depois, como diz Regina Guimarães no texto que serve de prefácio à peça no livro homónimo, editado pelas Edições Húmus (e que infelizmente não foi distribuído no teatro, onde não existiu folha de sala nem livro para folhear, por motivos alheios à produção do espectáculo):
“Quanto ao resto,
cada peça acrescentada ao puzzle da condição humana,
seja ela óbvia ou obtusa,
me soa forçosamente
a exercício de esperança.”

Ficha Técnica

encenação • Tiago Correia
interpretação • André Júlio Teixeira (Jovem Estrangeiro), Cláudia Lazaro (Mulher), Inês Curado (Rapariga), José Eduardo Silva (Polícia), Paulo Lages (Investidor Estrangeiro) e Romi Soares (Senhora de Idade)
consultoria artística e tradução • Regina Guimarães
cenografia • Ana Gormicho
figurinos • Sara Miro
desenho de luz • Rui Monteiro e Teresa Antunes
desenho de som • Rui Lima e Sérgio Lima
vídeo e fotografia • Francisco Lobo
design • Francisco Ribeiro
assistência à elocução de língua francesa • Absinte Abramovici
produção executiva • Maria Pinto
direcção de montagem • Zé Diogo Cunha
produção • A Turma (Estrutura financiada pela República Portuguesa – Ministério da Cultura / Direção Geral das Artes)
coprodução • Teatro Municipal do Porto e Cine-Teatro Louletano

(1) A citação original é de Hubert Humphrey e reza assim: “The moral test of government is how that government treats those who are in the dawn of life, the children; those who are in the twilight of life, the elderly; those who are in the shadows of life, the sick, the needy and the handicapped.”

Foto © Paulo Pimenta

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