Quem me rodeia alerta, “nunca conheci alguém com tão má memória”. Talvez por este medo de esquecer, escrevo. Talvez por isso anote as ideias que me assaltam. Durante uma peça de teatro não se pode (ou não se deve) escrever. Fica o leitor avisado, antes de embarcar nesta viagem por marés soltas, a bordo de um frágil barco de memórias construídas com tábuas prestes a desvanecerem-se. Por isso, escrevo agora. A primeira memória da noite é o carro a encaixar-se num espaço vazio à frente do Teatro São Luiz, a cerveja a respingar nos bilhetes que indicam Última Memória de Sara Carinhas. Um molho de gente a negociar sorrisos e sons à porta da Sala Mário Viegas e um papelinho nas mãos de todes a dizer Primeira Memória, depois um espaço em branco, um convite: agora escrevam. São espectadores, mas não vos queremos passivos. A peça inteira a gritar: ficam aqui pontas soltas, não sejam passivos.
Devo agir, a memória é plural. Com sinceridade, estamos no teatro. Quanto mais livre é o espaço mais a verdade quer entrar. Entramos nesse espaço (de teatro? de verdade-mentira? de dança? uma sala de visitas? de encontros? de festa?) e vemos uma montanha de cadeiras vermelhas, um piano, uma chuva de luzes, uma secretária com imagens, cartas, livros e máquinas analógicas prontas a relembrar-nos a necessidade feminina do quarto só para si, fantasma da autora que influencia com pés de veludo o universo Sara Carinhas.
Caminhamos dois ou três passos, não me consigo lembrar, e já estamos no palco, adiante e no centro. A actriz recebe-nos com uma caixa aberta e iluminada à espera das nossas palavras. Não percebo de onde vem a luz. A anfitriã transborda ternura. A caixa e a actriz dispostas num palco que não parece palco. Leves, os passos, a harmonia da gente a arrumar-se nos seus sítios como se houvesse lugares marcados, classes determinadas. Cada um dos espectadores, de volta à contemplação, já deixou o papelinho com a sua primeira memória na tal caixa. Ficaram lá as memórias das actrizes que vieram matar a curiosidade de ver a colega, do ministro, dos comentadores políticos, da sala cheia até não haver um lugar disponível. Mas isto é apenas a primeira memória.
Sentados em cima de um espanto, vemos a actriz que será mulher durante hora e pouco e a mulher que será actriz. Os gestos comandam o corpo único da peça que nos promete honestidade e devaneios, relatos e fábulas, num jogo de corpos e palavras. E como se constrói a memória?
Este corpo feminino move-se vestido de verde-árvores-biblioteca do futuro-floresta-livros-futuro-presente-possível. Sara Carinhas vai perdendo as peças de roupa à medida que se liberta de frames da memória. Ela, a memória, alarga-se por mais palavras-imagem: esperança, medo, coragem e uma outra palavra que rime com resistência. O corpo como esconderijo possível, tal como a biblioteca do futuro, algures na Suécia, para a palavra esperança, que ainda vai brotar. Pode ser um verso, um conto, um romance ou um discurso. Deve ser urgente. Pode ser uma dança sem palavras. E no meio do monólogo, a actriz recorda a última dança de Pina Bausch no “palco lá de cima” do São Luiz. A voz da mulher chega a todos os cantos da sala. Natural, ou amplificada por um rádio old-school a ler diários de escritores, a transformar a peça em literatura. Não estamos a observar, estamos a ler e a desenhar possibilidades a partir de palavras-imagem como garfos de fondue com uma foice e um martelo na ponta.
Voltamos à floresta e à ideia das palavras que não morrem. Daqui a 100 anos na floresta terão nascido ou haverá ainda leitores para a palavra escrita? Nenhum dos espectadores desta peça ou dos leitores deste texto estará cá para comprovar. Neste tempo de campos hiper-acelerados, nem sabemos o que significa cem anos, o que é um milhão. Como falar deles então?
Tal como Woolf, procura-se o ponto em que se cruzam realidade e ficção, verdade e mentira, memória e esquecimento. Atravesso essa ponte paradoxal até ao prazer escondido nos retratos de desconhecidos, amontoados e sem explicação lógica aparente nalgumas bancas da Feira da Ladra. Nunca os trouxe comigo por pudor. Agora visito-os na memória e sentado perto de Sara Carinhas associo slides de recordações estrangeiras projectadas num pano branco esticado em palco. Não sou o único. A actriz-mulher comanda. Não há tempo para ficções imaginadas, isto são histórias de gente com rosto. Sussurro ao ouvido de quem me acompanha: quero fazer isto lá onde vivemos, como nos serões em casa da Tia Ana. Um carro verde antigo. Uma manifestação com muita gente na rua. Uma família amontoada, miúdos com pijamas coloridos, todos a tentarem caber na imagem. Uma imagem merece o silêncio. E depois saltamos para outra. Ouvem-se as palavras escondidas nos papelinhos da primeira memória colectiva e colam-se a imagens dissonantes, como no Key of Dreams de Magritte. Encontramo-nos na fronteira que divide família e fetiche, reconhecido e voyeur, um prazer de narrar sem a moral autoritária que nos fecha, nos obriga a afirmar: foi isto que aconteceu. Foi apenas isto. Ouviram? Escrevo uma carta de ódio a essa realidade única e comprovo.
Uma fotografia a preto e branco navega pelas mãos da plateia e cada um escolhe no invisível a sua memória sobre a menina no meio daquela foto. A perspectiva dos outros: o chapéu dela, a relva rugosa, o que leva dentro da mala?, parece-se tanto com a minha sobrinha. Onde fica a realidade única aqui? Talvez seja a sua primeira imagem impressa, talvez seja a última imagem antes de uma morte prematura. Para a plateia, aquela foi a única imagem da menina.
A actriz-mulher-actriz canta como a mãe que embalava o bebé na esplanada soalheira onde me sentei para almoçar (e assim lembro-me do almoço), mas também canta como a coisa de que se recordou a espectadora na cadeira ao lado da minha. Será que é assim que funciona a memória?
Quando ganharmos o poder de reconhecer o que afinal foi bom e mau na nossa vida (“Estamos distraídos na nossa roda-peão quando alguma coisa se atravessa impiedosamente e sem aviso pela nossa história”) como reagimos? Como conseguimos analisar e acertar o passado? Encosto-me a Berger: “the past is never there waiting to be discovered, to be recognized for exactly what it is. History always constitutes the relation between a present and its past”. É para isso que a memória nos serve? Conseguir olhar para trás, uma e outra vez, sempre de outras formas, e organizar os sentimentos colados a cada alvo. Dizemos: isto foi uma óptima notícia, e anos mais tarde: afinal isto foi uma terrível notícia. Se assim for, precisamos de memória para envelhecer, para reconhecer e todos esses verbos que nos empurram para o dia seguinte apoiados na certeza (falsa) de uma narrativa só nossa.
O que aconteceu no dia 1 de abril de 2023?
Ninguém vem a uma festa para pensar na morte mas, quase no final, Sara Carinhas leva o texto a uma imersão pelo memento mori. Não quero escrever sobre a morte aqui, isso seria outro texto. Talvez essa obrigação de falarmos sempre sobre a morte (é uma chatice, mas está sempre a acontecer, não é Sakamoto?) quase no fim também não seja a escolha mais feliz desta peça. Mas a festa segue sem confettis.
Tenho um amigo que, durante os nossos almoços junto ao rio, e sem ninguém estar à espera, costuma disparar “Já viste como é linda esta merda?”. Por momentos olha-se em volta, esquecem-se as angústias e numa explosão interior, reconhece-se uma sensação de sorte simples, por vezes com tão pouco (dirão alguns). Mas sim, ainda sentimos o vento a pentear-nos o cabelo e podemos ler poesia.
Diante dos vários caminhos de fragmentação estilhaçada por imagens, sons, e outros dispositivos entrecortados que nos servem de âncora para uma odisseia pessoal e colectiva durante Última Memória, fica um último momento, um convite genuíno, uma disrupção na habitual relação entre actor-espectador, activo-passivo. Abandonamos de vez a ficção e juntarmo-nos num brinde ao amor, ao ritmo de um samba (que já não consigo lembrar quem canta). Descontraídos, descemos até ao palco como quem desce de Ipanema para o posto 10 para sentir a areia nos pés, e aí espera-nos uma mesa com copos sedentos de vinho e um cão de tamanho minímo, pêlo farfalhudo, ladeando a actriz sozinha. Apetece beber e dar festinhas ao cão, e fazemo-lo para celebrar o teatro. Brindamos com a actriz o amor à vida e à arte, entre todos os outros espectadores e as suas complexas memórias-vivas. Sente-se. De copo na mão, relaxado no meio de um dos palcos do São Luiz, este espectador sorri que nem um parvo, abraça quem deve abraçar e diz a frase roubada ao amigo: “Já viste como é linda esta merda?”.
Ficha Técnica
CRIAÇÃO, DRAMATURGIA E INTERPRETAÇÃO Sara Carinhas
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL Sr. Victor
FILMAGENS, REGISTO E APOIO À DRAMATURGIA Joana Botelho
CONSULTORIA ARTÍSTICA Nádia Yracema e Sara Barros Leitão
ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO Joana Picolo
DESENHO DE SOM Madalena Palmeirim
DESENHO DE LUZ Catarina Côdea
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Rita Faustino
PRODUÇÃO EXECUTIVA Mariana Dixe
COPRODUÇÃO Causas Comuns e São Luiz Teatro Municipal
RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS Officina Mundi – Joana Villaverde (Avis), Município de Avis, O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), Festival END (Coimbra)
APOIOS Mostra Camaleoa (Florianópolis, Brasil), Companhia Olga Roriz (Lisboa)
AGRADECIMENTOS Mariana Sá Nogueira, Ana Paganini, Olga Roriz, Madalena Alfaia, Margarida Côdea, Nome Próprio, vinho Que se foda ///
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