Um Legado de Espiões (Dom Quixote, 2017) é uma das últimas obras do britânico David Cornwell, mais conhecido como John le Carré. Estamos perante mais uma história da eterna personagem George Smiley. O autor, nascido em 1931, notabilizou-se pelos seus romances sobre espionagem. Além da sua carreira como professor universitário, trabalhou com os serviços secretos britânicos durante a Guerra Fria, tendo inclusive publicado a sua primeira obra nesse período.
Ao abrir o livro, somos imediatamente introduzidos ao pano de fundo de toda a nossa história, contada por Peter Guillam, que nos conduz ao longo de toda a ação – “O que se segue é o relato verídico, tanto quanto me é possível fazê-lo, do meu papel na operação de embuste britânica que teve o nome de código Bambúrrio, montada contra o Serviço de Informações da Alemanha de Leste (Stasi) em finais da década de 1950 e princípios da 1960 e da qual resultou a morte do melhor agente secreto britânico com que alguma vez trabalhei e da mulher inocente pela qual deu a vida” (pág. 1).
É neste momento que o narrador tem de interromper a sua tranquila vida de agente reformado. O espião, agora residente numa propriedade em Les Deuxs Églises na Bretanha, recebe uma carta do seu antigo serviço que mudará a sua vida.
A nossa personagem é severa e insistentemente interrogada sobre uma antiga operação que correu mal. Apesar de todas as tentativas para evitar dizer a verdade, não consegue resistir muito tempo. “Assim sendo, aceitamos que chegámos ao fim da estrada e a única opção que nos resta é sermos ousados, dizermos a verdade, ou mínimo dela com que nos possamos safar, e ganharmos uns quantos pontos por sermos bons rapazes; (…)” (pág. 54 e 55). Tudo isto porque os filhos de pessoas implicadas na operação em causa “Convenceram-se, não sem razão, de que os respectivos pais morreram por causa daquilo que parece ter sido uma descomunal cagada deste Serviço, e sua e do George Smiley pessoalmente.” (pág. 46)
Tudo começou com a extração de uma fonte de território hóstil e com a morte desta em território britânico às mãos do inimigo. Ao longo do relato feito no livro, descobrimos o objectivo da operação, todos os seus detalhes e o porquê de a verdade ter sido escondida, permitindo-nos imaginar como seriam e como funcionariam os serviços secretos britânicos na altura da Guerra Fria.
Tendo isto em conta, denotamos um confronto entre os dias de hoje e os tempos da Guerra Fria. Nesta “batalha” verificamos que as pessoas actualmente parecem já ter esquecido desse período conturbado, ignorando as acções e as razões dessa altura. Ainda nesta linha, há uma batalha entre o certo e o errado, entre o ser honesto e piorar a situação ou mentir e ser sacrificado. Vemos representado o eterno conflito filosófico e moral entre meios e fins. No passado, os fins sobrepunham-se, mas hoje essa relação inverteu-se. Nesta senda, é perceptível nova crítica: a preocupação, por parte das instituições e os seus mais altos dignitários, consigo mesmas e com a sua imagem, a qualquer custo, sacrificando aqueles que sempre os serviram lealmente e estão numa posição hierárquica ou na impossibilidade de se defenderem .
Uma narrativa sobre os bastidores obscuros da história, que entrelaça o passado e o presente, e tem condão de prender o leitor durante várias horas.
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