Elegantemente encenada por André Murraças, de forma minimalista, para Um Número não seria preciso um cenário barroco, já que o texto multi-premiado de Caryl Churchill preenche por si só, como que “em talha dourada”, o espaço vazio da Sala Estúdio do Teatro da Trindade. Apenas dois actores em palco, o competente José Pimentão e o veterano Virgílio Castelo, respectivamente filho(s) e pai. Um pai com um passado obscuro, cujo único filho foi clonado múltiplas vezes. É esta a premissa. Três filhos: o original – “o mau”, o bom e filho eleito e uma das cópias que o pai vem a conhecer. Começando pelo fim, é com esta última “cópia” que o pai mais se desilude (prestação fluída de José Pimentão), tendo nele depositado a sua derradeira réstia de esperança. É um homem simples, casado, pai de três filhos, cuja filha mais nova comemora naquele dia um (curioso número) ano de aniversário e que o pai visita após a tragédia ocorrer. Visita a sala decorada com o bolo e balões coloridos – uma infância paralelamente perdida – uma espécie de “La La Land” em que o protagonista não se questiona, apenas vive na espuma dos dias.
Ao contrário do trauma original, o “mau” filho (incrível prestação de José Pimentão, sente-se a tensão no ar) aparentemente degenerou por negligência ou por roleta russa genética, enquanto o filho eleito (eloquente prestação de José Pimentão) foi feito a régua e esquadro, de óculos heroicos à la Clark Kent, também refém de um ambiente adequado, de um olhar atento de um pai previdente e de uma genética benevolente. Não somos tábua rasa aquando do nascimento, com o ambiente a despertar o potencial encapsulado no ser que tem tudo para se tornar uno e único. Embora no caso do terceiro filho tenha existido “aparente” paz existencial, os restantes filhos são muito mais inquietos e em cada um deles, neste trio de persona exterior idêntica, mas de personalidade distinta, se pressente a possibilidade de se expandirem e se consertarem, já que o irmão feliz e resolvido parecia mentalmente mais saudável – foi aquilo, na realidade, que o pai devia ter sido. Um pai de família. Infelizmente, não conseguiu redimir-se, apesar de muitas vezes ter havido tal oportunidade e pré-aviso.
Num mundo em que a tecnologia nos tenta fazer cada vez mais iguais, existe o dever de sermos únicos e o teatro, como último reduto pedagógico, em espelho, deverá alertar para a necessidade de nos moldarmos verdadeiramente à individualidade (não ao individualismo!).
Infelizmente uma questão que destacamos na sessão a que assistimos, alheia à produção do espectáculo, foi a infelicidade de alguma desconcentração por parte do público, nomeadamente com telemóveis e barulhos ocasionais, o que se revelou, uma ocasional perturbação para o espectáculo, dado que é uma sala pequena e muito envolvente.
Toda a cenografia e música, a fazer lembrar os idos anos 80 e 90, é de um enorme bom gosto e discrição, bem como os efeitos sonoros e interessantes referências cinematográficas, nomeadamente quando o pai assiste a um excerto de Música no Coração e se faz uma clara alusão à infância e à memória, num momento em que se percebe (prestação convicta a que Virgílio Castelo já nos habituou e não desilude, num papel mais contido na primeira parte, mas que depois revela um lado muito sombrio) que, no fundo, necessita também de uma reestruturação e (re)unificação. Todos acabam por encontrá-la, na realidade – e este Um Número é uma quase tragédia, na medida em que apenas e só uma das personagens tem final feliz. Ficamos com a sensação que é no lugar menos óbvio que existe a felicidade: na leveza e na banalidade do dia-a-dia. Nas coisas simples da vida, do devir e simultaneamente da memória. Talvez ser-se único seja isso mesmo: ser apenas um número.
Ficha Técnica
Texto: Caryl Churchill
Tradução: Paulo Eduardo de Carvalho
Encenação, Cenário e Figurinos: André Murraças
Interpretação: Virgílio Castelo e José Pimentão
Assistência Vídeo: Três Vinténs
Desenho de Luz: André Murraças
Produção Executiva: Mónica Talina
Um espetáculo Um Marido Ideal
Coprodução Teatro da Trindade INATEL e Pinguim Púrpura
Apoio à criação: Fundação GDA
Apoios: Polo Cultural das Gaivotas | Boavista e Plural
Em cena até 8 de Março
Foto © Filipe Ferreira
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