home Antologia, LITERATURA Um Rio à Beira do Rio – Mário Cesariny (Documenta, 2017)

Um Rio à Beira do Rio – Mário Cesariny (Documenta, 2017)

Se o Surrealismo português continua a parecer um movimento instável, de contornos nebulosos, difícil de balizar temporalmente, de cariz efémero e marcado pelas dissidências entre artistas, a figura de Mário Cesariny funciona como um marco central, que o posiciona e define como discurso de resistência e inovação face ao regime ditatorial de Portugal dos anos 40 e 50, assim como de oposição ao neo-realismo.

Em Paris, enquanto estudava na Academie de La Grande Chaumiére, Cesariny teve contacto com Breton, figura-pilar no movimento em França, e trouxe a corrente e suas influências para Lisboa onde, aliando-se a nomes como os de António Pedro, José-Augusto França, Luíz Pacheco, Alexandre O’Neill e Cruzeiro Seixas, de quem se aproximou em diferentes momentos e com resultados mais ou menos caóticos, fundou “Os Surrealistas”, afastando-se do Grupo Surrealista de Lisboa. Para além dos poemas, aos quais aquando o centenário de seu nascimento foram conferidas novas edições por parte da Assírio e Alvim, Cesariny foi ainda prolífico no campo das artes plásticas, uma marca do movimento surrealista no que toca à pluralidade de linguagens e meios explorados, no que poderá ser entendido com uma tentativa (talvez não completamente concretizada) de aliança entre agentes de várias áreas de expressão contra a ditadura, através de eventos coletivos como exposições e o lançamento de antologias, muitas vezes censuradas pelo próprio estado: “Porque a poesia deve ser feita por todos e não por um”, escreve O’Neill no manifesto “Porque aderimos ao Surrealismo”, uma máxima que não iria impedir as zangas e conflitos que ainda hoje são relembrados como forças impulsionadoras e também destrutivas do grupo.

Se os nomes de Breton, Buñuel e Dali dispensam apresentações, Cesariny e os restantes elementos do movimento português ainda carecem de um merecido reconhecimento além fronteiras e o lançamento deste Um Rio à Beira do Rio aborda esta posição periférica de Portugal e dos seus artistas face ao resto da Europa. As cartas que compõem o livro foram enviadas por Cesariny a Frida, uma tradutora que se revela um elemento-chave nesta troca de cartas ao fazer traduções de Cesariny e outros poetas queridos deste, e Laurens Vancrevel, um poeta surrealista holandês que contactou o português a fim de descobrir mais sobre o movimento por cá, depois de ler A Intervenção Surrealista, já que este era praticamente desconhecido na altura.

Apesar de o título já o indicar, o facto de as cartas presente no livro serem apenas as de Cesariny para o casal holandês faz do mesmo um testemunho um tanto unilateral, que deixa ao leitor a tarefa de presumir quais as respostas do lado holandês ao que é escrito por Cesariny, o que dificulta a leitura de alguns dos textos aqui transcritos para aquele que não tiver um conhecimento mais detalhado dos nomes, obras e locais do surrealismo. Nas cartas a Larens e Frida, Cesariny reflete sobre o movimento português em relação a outras geografias e demonstra o seu desagrado e tristeza pela ausência mesmo na imprensa e crítica internacional. Logo na primeira missiva transcrita no livro, datada de 1969, escreve:

“há um abismo abismante, desde o início, entre aquilo que pensam e por vezes escrevem sobre os surrealistas portugueses e o que realmente existe, aqui, desde 1947” (25).

Um dos pontos mais relevantes das cartas será o cariz comunitário desta correspondência entre artistas que pretendem estreitar os laços intelectuais e emocionais que os unem, numa troca de palavras, promessas de pôr Laurens em contacto com outros artistas e de divulgar o seu trabalho em Portugal, pedidos de divulgação e tradução dos seus poemas para o holandês, artigos de jornal (como os que documentam o caso jurídico de Cesariny pelo envolvimento na publicação do volume de poesia erótica e satírica com Natália Correia), discos de Satie, impressões sobre gatos, um poema de Cesariny sobre o fim do colonialismo português, gravuras de Cruzeiro Seixas, pinturas, revistas e outros artefactos culturais, criando um cadáver-esquisito transnacional que, através da colaboração artística, previna o esquecimento e obliteração deste movimento em Portugal, cujos esforços artísticos eram muitas vezes rejeitados como sendo absurdos ou excêntricos, descurando o aspeto liberatório e experimental do mesmo contra a censura, quer estética quer moral. Não só é para Cesariny uma afronta que Portugal se encontre fora do radar dos surrealistas franceses, como, numa outra carta, exprime o seu desejo de se desvincular do movimento francês e do que este propõe, dirigindo-se a Jean-Louis Bédouin sobre o livro de José Pierre que, num compêndio sobre o movimento, dedica apenas meia página ao grupo surrealista português:

“Paranaguá acaba de nos propor que estreitemos um pouco os laços e os projetos entre os surrelistas portugueses e o grupo de Paris. Estreitar, claro que queremos, mas também é desejável que se faça uma pequena limpeza nas vias de comunicação, caso contrario corremos o risco de apenas estreitar o vazio. Uma publicação, digamos, recente – Le Surrealisme, de José Pierre (….) – acaba de expor, acerca do surrealismo português, dados que ultrapassam largamente o grau de erro admissível (31).

Na carta cáustica, Cesariny desfaz o tal erro e traça um retrato dos dois grupos surrealistas portugueses (o que criou e aquele de que se desvinculou), apontando “o fracasso do  grupo surrealista que constituí juntamente com Alexandre O’Neill, Vespeira e outros (…) Numa carta a André Breton, escrita em [19]45, eu expressava a minha total não solidariedade para com [J.A.] França e o apalhaçado estado de confusão em que caíra o dito grupo surrealista” (33). Cesariny escreve ainda, sem qualquer hesitação, que “quem deu a conhecer o surrealismo, a importância da sua extensão, da sua revolução, fui eu” (35).

“Apresento-me: fui muitíssimo (formidavelmente) belo! Agora: uma ruína” (61)

É este o Cesariny que vai buscar Frida e Laurens à estação de Santa Apolónia quando estes visitam a capital portuguesa, com catálogos e reproduções vindas de Amesterdão na bagagem. Um Rio à Beira do Rio é um testemunho do que foi uma efervescente troca de cartas que superou a mera intenção de apenas estreitar afectos. Através destes testemunhos, traçamos um retrato do artista e da comunidade surrealista portuguesa, a sua ausência do panorama europeu, e a frustração de Cesariny por não ser reconhecido como um marco importante da cultura portuguesa e criador do movimento surrealista português, dentro e fora do país:

“talvez vocês os dois [Frida e Laurens] tenham reparado, durante a vossa estadia em Lisboa, que nós vivemos num deserto que se vai aguentando sempre com a miragem do convívio. Há muito tempo que também nós somos miragens, de tal modo esquecidos de nós próprios, o que vem naturalmente do OBLIVION que a senhora Europa, a grande sábia, atira sobre nós desde o século XIII. Os franceses abandonaram-nos, os espanhóis gozam connosco, os alemães, nada dizem! Os belgas, também não” (64).

Na última carta, datada de 2005 (Cesariny viria a morrer no ano seguinte), e numa altura em que já poucos seriam os que escreviam cartas, o poeta explica que a mão direita já não escreve nem pinta, o que tornou os seus quadros muito mais valiosos; à semelhança da “Europa de merda, que corre como nunca (USA a ajudar) em direcção ao seu desaparecimento” (442), Ciente de que em breve poderá desaparecer, vai-se despedindo dos amigos e da criação artística, ao escrever “podíamos ‘morrer a sorrir’, como acreditava Apollinaire” (438), partilhando ainda com Frida e Laurens que preparava uma tradução, em verso rimado, da Epopeia de Guilgamesh. Podemos adivinhar que a tradução foi interrompida pela morte do poeta, mas se existe um fio condutor que une as cartas escritas ao longo de mais de trinta anos, será o entusiasmo incansável de Cesariny e a sua insistência em criar com Frida e Laurens um espólio que sobrevivesse ao tempo, através de uma troca incessante de textos e obras, valiosíssima numa altura marcada pela censura da PIDE em Portugal, tendo sido Cesariny muitas vezes perseguido pela sua orientação sexual e criação artística. Sobre esta tradução de Gilgamesh, Cesariny escreve “creio que estou a fazer uma coisa muito, muito bela” (439).

O mesmo poderá ser escrito sobre todo o trabalho feito pelo poeta no que toca à criação artística, divulgação e circulação de trabalhos de outros e como força impulsionadora do movimento surrealista em Portugal.

Poderão ler um excerto do livro AQUI

Por defeito profissional, Ana Bessa Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

Mais recensões/crítica literária AQUI.

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