A História segue uma narrativa, ainda que decepcionante. Frases como “Devemos ser pessoas mais empáticas e unidas” já não tranquilizam ninguém, meros paliativos pós-colapso: nada está garantido, tudo é luta. Vemos, se tivermos olhos para ver, que até os mecanismos de direita são replicados na esquerda; existe a definição “paranóica” de que a violência é justificada pelas supostas vítimas, que ao “possuir toda a verdade” têm o poder de vingança (genocídio do povo palestiniano por Israel).
Parece ter-se cristalizado a ideia de que a esquerda cedeu o poder político à direita ao centrar-se na cultura. Contudo é na cultura que muitas de nós, pessoas artistas, podemos exercer a nossa pequena influência. É importante não desistir, mas desconfiar das soluções que nos são dadas; o welfare parece inócuo mas é politizado e ergue-se contra os direitos das minorias. Existe uma sensação de companheirismo totalitário ao largar lágrimas por toda a humanidade – querer dar voz a quem sempre teve voz.
Tornámo-nos pessoas superficiais e artificiosas. A noção instagramável de “auto-cuidado” é a mais importante. Como seria ler realmente uma imagem? É certo que a imagem não se esgota e é lida por cada herança cultural de forma diferente. A fotografia da pessoa antropóloga raramente é reconhecida pela comunidade que esta fotografa, mas agora chegam-nos impressões ridículas e efémeras. As pessoas artistas olham o compromisso que têm com o mundo como algo que resvalou para uma perda de controlo.
Tudo isto dói como uma cicatriz que ficou no meu polegar há umas semanas, ao limpar uma faca. Falava com alguém que passou a ser uma memória, como a sensação fantasma de um anel que se usou durante algum tempo e se tirou. Viver é um estado de constante luto, tornamo-nos cada vez melhores neste combate e encontramos força na dor. Resta-nos rejeitar a futilidade e encontrar colos que nos permitam ser vulneráveis: “Tudo é luta e eu não aguento mais.”
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Rafaela Jacinto é artista, ativista e queer desobediente do teatro e da escrita. “A música está na minha cabeça” é o seu terceiro livro, depois de “Regime” (2020) e “Fiz uma coisa má” (2021), ambos editados pela Douda Correria. Nasceu em 1994, licenciou-se em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016) e é especialista em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2019). Estudou ainda Cinema Documental e trabalhou na última década com os realizadores Joaquim Pinto e Nuno Leonel.