Depois de uma pesquisa na Wikipédia, de ver umas t-shirts estampadas com uma mulher de sobrancelha grossa, um exotismo provocador, uma história de vida dolorosa, está feito, pronto, já sabemos tudo sobre ela. Já nos pertence. Mexicana? Tanto melhor. Nasceu de um país da América Latina? Que maravilha. Evocar Frida parece o mote perfeito para encher uma sala. Fórmula vencedora. Até aí tudo certo. Ou talvez totalmente errado, pela desonestidade intelectual que é vilipendiar uma artista com a dimensão e o legado de Frida Kahlo. Vamos arranjar umas calças floridas. Um mimo. É a estética. Pena que, depois de se encher a sala, há um espetáculo. É uma chatice.
O início, não sendo auspicioso, até pelas interpretações, encerrava alguns aspetos interessantes. Três pessoas, vindas do Porto, a descobrir Lisboa. E, claro, não nos sendo alheio o desafio de ser do Porto, de passar pelo processo verdadeiramente dantesco de encontrar uma casa em Lisboa, de deixar uma vida para trás, do medo e entusiasmo pelo caderno em branco que é viver numa cidade nova, a atenção foi captada. Nessa aventura no desconhecido, aquele formato de conferência em que três pessoas, a fazer de si mesmas, atrás de uma mesa com microfones, falavam do seu percurso pareceu-nos menos mal, não sendo bem. Não fosse a tentação permanente do cliché e esta fase ter perdurado demasiado tempo, poderia ter-se encontrado ali um ponto de referência interessante. Houve partes convincentes, como aquela referência sarcástica à experiência de trabalho na Benetton e o telefonema inglório para a senhoria ao chegar ao quarto. Só que na tentativa de explicar o espetáculo, a sua razão, a sua génese, passa uma boa parte da peça. Até que, extenuados daquele registo, esperávamos a fase seguinte. Percebemos que queriam falar de amor. É que isto só podia piorar. E agora havia uma sala e tudo.
Quando um texto mal alinhado nos leva ao amor, então a desgraça está para vir. Sim, que o amor é digno de respeito e banalizá-lo até à excrescência é aborrecido. E não é por nos esperar uma visão adolescente do amor. O amor talvez faça perdurar o estado de adolescência, no sentido de deslumbramento inicial e irreprimível. O problema é que o fez cair no mais ridículo e absurdo fingimento. E não basta falar de amor, alinhar frases soltas, para que, pretensiosamente, a poesia aconteça. Não aconteceu. Ainda bem que o Teatro D. Maria II, com o seu Ciclo Recém-Nascidos, abre portas a jovens atores, novas criações e, bem assim, novos públicos, mas quando padrões mínimos de qualidade não são alcançados, há uma frustração que nos fica. Arriscaram? Certo. Ainda bem. A coragem é de assinalar.
Qual é o problema? Uma Frida quer falar de amor, de feridas (emocionais). Vejam só este trocadilho: Frida, ferida. Genial. O problema é que não basta evocar Frida, colocar a sua imagem na parede e gritar, enquanto se salta em cima de um colchão, ou se circula pela sala a repetir umas quantas vezes “pára de olhar para mim”, ou algo similar, olhando para o seu retrato, e se fazem uns momentos a “olhar para dentro” (parece tirada de um livro de auto ajuda) a falar de uma experiência amorosa pessoal, mal escrita, para se poder dizer que estamos perante um espetáculo.
O texto, a determinado momento, é demasiado mau e tentar não ouvir é um exercício de limpeza intelectual. Haja arrojo para o apresentar como sendo digno disso.
Rir com algumas piadas mais certeiras não chega para que as pessoas, irremediavelmente enfadadas com uma má récita de escola, em que os filhos e familiares não participam, batam palmas de pé. Não o fizeram, claro. E a sensação de embuste era perceptível, apesar das reações a alguns momentos com mais graça. Tentamos não lembrar a tentativa de explicar porque Diego voltava sempre para Frida. Qualquer coisa como tentar condensar uma história complexa numa espécie de manual para manter uma relação, ou um engate, numa frase certeira? Esqueçam lá isso. Deixem esse papel para as revistas que se leem no cabeleireiro ou enquanto esperam o dentista, e ponham o teatro a salvo dessa esfera que todos visitamos, mas que não procuramos quando entramos na sala estúdio do D. Maria II.
Por defeito profissional, Joana Neto escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Sofia Berberan
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