Longe da vista, longe do coração. Este parece ser o mantra que acompanha toda a existência de reclusão forçada de uma parte dos cidadãos, em Portugal e no Mundo, que nasceram portadores de uma alteração genética chamada Trissomia 21, ou de outras, causadores de incapacidades físicas ou mentais. “Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura Do Pai”, co-produção do Teatro Nacional D. Maria II e da Crinabel, coloca-os na ribalta, com toda a dignidade que merecem, e servidos por excertos do texto de luxo do livro homónimo de Gonçalo M. Tavares, o nosso próximo Nobel da Literatura.
A peça foi estreada originalmente em 2016, para festejar três décadas de existência do grupo Crinabel, uma cooperativa sem fins lucrativos, fundada por um grupo de pais e outros elementos ligados à reabilitação de crianças e jovens com atraso no desenvolvimento. O elenco é constituído por 13 intérpretes portadores de deficiência cognitiva e física e dois atores do Teatro Nacional D. Maria II: Manuel Coelho e Paula Moura.
No livro, como na peça, a protagonista de toda a acção é Hanna (Carolina Sousa Mendes), uma menina portadora de Trissomia 21 que, com algumas regras decoradas sobre o que dizer caso seja interpelada, divaga em busca do pai, até que encontra Marius (Rui Fonseca) que, em sentido inverso, foge de algo ou alguém nunca totalmente esclarecido, mas que, no entanto, sente uma forte ligação e instinto protector em relação a Hanna. Juntos cruzam-se com diversas personagens marcantes, bem ao estilo do seu criador, como o sinistro fotógrafo Josef Berman (António Coutinho) que, num ritual estranhamente familiar e repetido milhares de vezes, tirava “Três fotografias para cada animal. De frente, perfil esquerdo e perfil direito! Cada animal …/ Marius: Com o seu número. Estou a ver.” Mas também fotografa pessoas parecidas com Ana, que pertencem a outro povo…
Fried Stamm (Paula Mora) quer provocar uma perturbação progressiva e paulatina por via de cartazes apelativos em ruas secundárias “onde tudo se vai decidir”. “Estamos a tentar avisar as pessoas, é essa a nossa função. Trata-se de fazer com que elas não esqueçam, não se imobilizem mentalmente, mas para isso é preciso pará-las, primeiro, fisicamente: por isso actuamos mais nas cidades, onde a velocidade média do andar aumentou muito, não sei se já reparou. É por causa desta velocidade que os cartazes são indispensáveis. Bons cartazes, boas imagens, boas frases! São elas que obrigam a parar, a parar durante algum tempo, o tempo necessário para digerir ocularmente a imagem e depois o texto (…) Pela repetição, por não deixar que se instale qualquer tipo de trégua ou suspensão, provocar uma circulação de mensagens insatisfeitas, de informação indignada, repetir pequenas pancadas para, no fim, demolir”; Vitrius (Joana Honório) colecciona antiguidades e preenche obssessivamente um caderno, passado de geração em geração, com números pares, uma “corrida de resistência” contra a passagem inexorável do tempo e da(s) vida(s); Moebius (Manuel Coelho), dono do hotel cuja planta reproduz à escala o mapa da Europa delimitado pela localização dos campos de concentração, que tatuou na pele a palavra judeu em várias línguas, com a estranha e inexplicável fé de que foi ela que o protegeu… Estilhaços, fragmentos de um todo desolador e irreversível, semeado pela II GM, com toda a sua selvagem crueldade, de que Hannah se destaca pela sua candura, ingenuidade e dependência, numa época em que a Humanidade perdia definitivamente a sua inocência.
Por alturas do lançamento do livro, no início de 2015, o autor Gonçalo M. Tavares, em conferência informal com Souto Moura por interlocutor, comentava de onde surgira a ideia para o livro “Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura Do Pai”. Algo que sempre o impressionara era a invisibilidade destes cidadãos com incapacidades motoras e cognitivas, o modo como a sua existência decorre em paralelo com a do cidadão comum, sem nunca com ela se cruzar. Os seus únicos percursos fora de casa são de ida e regresso entre o seu lar e as instituições onde passam os dias. Muito raramente os vemos num supermercado, numa instituição pública, na praia, num campo de futebol… São virtualmente invisíveis. Esta peça devolve-lhes a visibilidade em dobro e dignifica-os, com todas as características que os tornam únicos. Com frequência, as luzes intensas do fundo do palco iluminam bem mais o público do que o elenco. A dinâmica habitual entre espectador e actor quase se inverte. É o espectador que se vê exposto, forçado a abandonar uma posição habitual de anonimato, conferido pela escuridão, e é visto pelo actor, sem que este perca o seu lugar de destaque.
A personagem Fried Stamm relembra-nos a velocidade vertiginosa das ruas de hoje, onde só um bom texto ou uma imagem impactante tem o poder de (nos) fazer parar. Esta peça surge como oportunidade bem aproveitada para nos deter e, ao mesmo tempo, abalar o nosso conforto de veludo, no belo Theatro Circo, dando voz e, acima de tudo, tempo e atenção sem reservas a quem nunca a tem. O facto de ser evocado a drama do Holocausto não é casual. Não foram apenas os judeus as suas vítimas. Também o povo Roma, prisioneiros políticos e portadores de incapacidade várias, incluindo a Trissomia 21. Aprendemos a lidar com realidades que nos escapam, não pela teoria ou especulação, ou pelo exercício hipócrita da restrição e “educação” perante reacções de desdém ou fugindo à tentação de rir e evitar o contacto com quem desconhecemos. Encontramo-nos no Outro quando com ele lidamos sem reservas, tomando-o por tudo o que é, e espectáculos como este são escassos para a importância e impacto que gestos de aproximação e revelação podem ter nos seus públicos e na percepção social destas vidas invisíveis. Parabéns a toda a equipa e que venham os próximos.
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Foto © Paulo Pimenta