Uma Paixão Simples não é um novo Amante de Lady Chatterley. Não apenas porque a perspectiva é outra, e as condições se alteraram tão radicalmente, mas porque já não há qualquer necessidade de encenar; não é preciso caber no espartilho, nem acertar com o figurino de uma sociedade tão enclausurada como a da era eduardiana. E, no entanto, paradoxalmente, em comparação com o livro de D.H. Lawrence, tudo é mais complexo em Uma Paixão Simples. Mesmo que os aspectos da logística sejam ligeiramente mais práticos – a narradora tem a sua casa, é independente, não é a consorte de um lorde infeliz –, trata-se ainda de uma união secreta. Porque ele é casado, ao passo que ela é divorciada. Por isso – o que é interessante para aceder a este livro –, o segredo está do outro lado, no campo masculino. E nada disto deve fazer supor um quadro isento de problemas, porque tudo é, em Uma Paixão Simples, muito mais difuso, inatingível, descentrado; tudo se confunde e nada é tão tingido a preto e branco como sucedia no universo fechado e rígido de Lady Chatterley e do seu amante.
Este livro começa sob o signo do desejo de objectividade, de «viver por impulso» (p.9). É como se a autora – ou a narradora, sua proxy neste breve livro, de uma exactidão percuciente – elaborasse uma reportagem, ou estivesse afadigada na escrita de um relatório. Nestes momentos cruciais, que são os do começo do livro e segmentos sequentes (até, sensivelmente, meio do livro), predominam notações referentes ao corpo, à acção do físico – «Pareceu-me que a escrita devia tender para isso, para a impressão que provoca a cena do acto sexual, a angústia e o espanto, uma suspensão do juízo moral.» (p.8) Tudo se realiza em actos que estão despidas até ao âmago, e toda a realidade que circunda os gestos e as atitudes firma-se num registo mínimo, que recusa quaisquer decorações, ou acrescentos – «Eu não tinha nenhum futuro a não ser o próximo telefonema a marcar um encontro.» (p.11) Nada além da união física, sexual, entre a mulher que narra e o homem com quem ela está. Tudo o que exista para lá disso está anulado à partida, não chega a manifestar-se. É, pelo contrário, no sensorial dos dois amantes que se concentram os esforços da narrativa – «gastar o corpo: fazer amor até titubear de cansaço» (p.24). São os dons da exclusividade. Uma exclusividade que não é movida a combustível moral, mas também não é compelida por impulsos libertinos. Não há considerações que extravasem a esfera do encontro de duas pessoas. Ou seja, se o mundo não é sobremaneira relevante – ainda que nos cheguem ecos leves desse agora distante 1989 –, para este escrito, se a realidade exterior aos dois amantes não é dotada de especial valor, também não é na rebeldia que a narradora encontra o seu esteio. E, por conseguinte, não é de libertinagem que se trata, neste livro. É difícil dizer o que há, então. Algo que lembra o filme Intimidade, de Patrice Chéreau, mesmo que não haja, em Ernaux, a desolação paisagística, a austeridade radical daquele filme; mas o livro assemelha-se à película, na exclusividade erótico-sexual, na incapacidade, ou recusa de ceder ao sentimementalismo barato.
Apesar do «princípio de abjecção» (p.29) de que a narradora lança mão, não chega, propriamente, a haver qualquer comprazimento na abjecção, mas só a lucidez de constatar. Tudo é, neste livro, verdadeiro, mas sem gritos, nem histerismos – «A única verdade incontestável era visível olhando para o seu sexo.» (p.30) Não há aqui qualquer desejo de exibição, de fazer alarde – «um exibicionista só quer mostrar uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante» (p.37). O «interdito social» (p.16) reside naquilo que não têm os impropérios na boca do amante, originário «de um país de Leste» (p.27) e, portanto, falante de outra língua. São «antes de mais diferenças culturais» (p.28), aquelas que separam os dois, e o que leva a narradora a dizer: «o homem que amamos é um estranho» (p.32).
A certa altura, aquele desiderato inicial conduzirá a tal ponto de escassez, que a narrativa recebe um impulso contrário, e as sementes da subjectvidade começam, lentamente, a erguer os seus rebentos. Este processo de retracção e de alargamento organiza a narrativa e fornece-lhe uma espessura, uma realização, que não seriam tão impressionantes, caso se tivesse mantido tudo no registo quase-jornalístico dos primeiros momentos de Uma Paixão Simples. O corpo, o exclusivo do relato inicial, cede, pouco a pouco, lugar a outro tipo de considerações, como a que dá conta da «atitutude antecipada de orgulhosa indiferença» (p.39) da narradora. Essa transição, subtil mas impressiva, chegará a a fixar-se e a ser objecto de meditação por parte da narradora – «Mas enquanto esta páginas forem, ainda, pessoais, e estiverem ao alcance da mão como estão hoje, a escrita continua aberta. Parece-me mais importante acrescentar aquilo que a realidade me trouxe do que mudar o lugar de um adjectivo.»(p.65) Por fim, já não será apenas o corpo e a acção, mas o que sobra deles, o que fica em seu lugar, aquilo que ocupa, obsidia a narradora – «Conservei, sem o lavar, um copo por onde ele tinha bebido.» (p.69). E, no entanto, de uma forma que não é fácil de explicar, o livro de Ernaux nunca chega a manifestar sentimentalismo, nem atinge os extremos insuportáveis da subjectividade. Nem mesmo quando a narradora-protagonista se afunda, ou ao menos no momento em que mergulha impetuosamente nas águas menos claras da obsessão: «[A.] não me largava a cabeça de manhã à noite» (p.34).
Uma Paixão Simples é um relato desafectado, sereno e sóbrio que dá conta dos encontros sexuais entre uma mulher matura, de vida resolvida, e um homem cuja única identificação é feita por uma simples inicial. Simbolicamente, ou não – arriscado dizer, neste livro austero, que inibe qualquer afeição –, o elemento masculino é um estrangeiro, o que apenas reforça as barreiras que a narradora já impusera antes, ou que a própria situação erguera de começo: encontros casuais, para sexo, sem qualquer compromisso, sem revelações, nem entregas. No entanto, este é um projecto minado desde o começo. As interrogações, as perplexidades, são, de início, subtis, quase secretas – «Onde é que está o presente?» (p.14); «Eu já era só tempo a passar através de mim.» (p.15) –, mas em breve a intensificação física converte-se num desenvolvimento (também) pessoal, com algo de subjectivo, a dado momento – «Vivia o prazer como uma for futura.» (p.41) Daí que aquilo que começara por ser a narração pragmática de um entendimento físico passe a ser a perplexidade de uma busca necessariamente idiossincrática, peculiar, não só à narração, mas à sua narradora. Sem perder o leme de um realismo ferrenho, Uma Paixão Simples converte-se, gradualmente, na expressão de um indivíduo, e os acontecimentos que lhe sucedem são muito menos uma questão de acasos e de fortuito do que um caso de sentidos que se ampliam e urdem uma teia muito mais complexa do que ao início se supunha.
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