home Antologia, LITERATURA Uma Questão de Conveniência – Sayaka Murata (D. Quixote, 2019)

Uma Questão de Conveniência – Sayaka Murata (D. Quixote, 2019)

Nascida em Inzai, no Japão, em 1979, já em criança Sayaka Murata, que gostava de ler ficção científica e policiais, sonhava tornar-se escritora. É hoje uma das vozes mais originais da ficção contemporânea japonesa e uma das mais mediáticas romancistas dos nossos dias, tendo escrito para a Granta e sido nomeada Mulher do Ano pela Vogue japonesa, em 2016. No entanto, tal estatuto não a impede de trabalhar em part-time numa loja de conveniência na cidade de Tóquio, lugar onde gosta de observar o vai-e-vem das pessoas que a frequentam,alegando que tal observação é inspiradora para a sua obra. Essa inspiração transparece de forma clara neste pequeno, iluminado e, por vezes, perturbador, romance Uma Questão de Conveniência.

“Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.”

Editado em Portugal pela D. Quixote, traduzido em mais de vinte países e vencedor do prémio Akutagaw, o romance, legítimo filho do espírito de fabulação japonês, gira em torno de temas que vão desde o inconformismo social, ao papel das mulheres na sociedade contemporânea, à parentalidade, à assexualidade ou ao celibato voluntário.

A história é-nos contada na primeira pessoa por Keiko, a sua protagonista. Desde muito pequena, Keiko era vista por todos, e também por si, como estranha, uma espécie de peça difícil ou mesmo impossível de encaixar na engrenagem do mundo. No infantário, por exemplo, em vez de aceitar fazer um funeral a um lindo pássaro que tinha morrido, propôs à mãe levá-lo antes para casa e comê-lo, e ainda apanhar mais uns quantos para que ninguém da família passasse fome. Mais tarde, já na escola primária, na ânsia de pôr fim imediato a uma bulha entre dois colegas, bateu na cabeça de um deles com uma pá. Ainda na escola primária, perante uma professora que parecia não conseguir sair de um estado histérico, Keiko baixou-lhe as saias e as cuecas para que esta se calasse, o que efectivamente aconteceu de imediato. “Foi assim, sempre com a ideia de que precisava de me curar de alguma coisa, que me fui tornando adulta”.

Consciente da sua estranheza, Keiko decide não prosseguir uma carreira académica e trabalhar numa loja de conveniência, mantendo-se assim (pensa ela) longe da pressão social do trabalho, do casamento e da normalidade. Dezoito anos depois, já com 36 festejados, Keiko continua a ser uma funcionária exemplar da loja de conveniência. Não aspira a mais nada, para grande incompreensão e transtorno da família e dos amigos, que também nunca lhe conheceram um namorado.

Para Keiko, a loja de conveniência está repleta de sons familiares que nunca mudam e que constituem para si uma forma de normalidade. É neles que a protagonista encontra a sua zona de conforto. Na reunião da manhã, antes da abertura, os funcionários treinam as frases das promoções e a forma protocolar de receber os clientes: “Irasshaimasê”, dito com um sorriso. Está tudo no manual de comportamento da loja de conveniência: a forma normal de sorrir e o modo mais correto de se falar com alguém. É um verdadeiro guia de comportamento social, o caminho para a invisibilidade, e segui-lo oferece a Keiko a garantia de que nada pode correr mal.

Ao longo das suas páginas, o romance ganha contornos de metáfora dos tempos modernos, onde não existe lugar para a singularidade. “O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.”A dado momento, Keiko aprende a defender-se do julgamento dos seus pares, copiando os modelos das colegas, arrastando a voz, imitando-lhes a roupa e os acessórios, quase se confundindo com elas, sem, no entanto, conseguir deixar de ser vista por todos como alguém que vive de forma estranha.

Será ainda no trabalho que Keiko se irá envolver com um rapaz, Shiraka, com propensões para a marginalidade, eque,ao contrário, daquela, rejeita o cruel processo de normalização. Com Shiraka, Keikoirá estabelecer um acordo simbiótico em nome das aparências, aceitando que o mesmo se aproveite de si, qual parasita, de forma descarada, tendo apenas como contrapartida poder passar a manter perante o mundo a fachada de uma vida normal.

Escrevendo de forma aparentemente simples, Sayaka Murata pinta-nos um quadro vivo sobre a inadaptação na contemporaneidade e as diversas imposições sociais que constrangem cada cidadão. O emprego, o casamento, a família, a projecção profissional são metas essenciais à normalidade. Não as atingir, ou não atingir pelo menos os seus mínimos estabelecidos, gera desconfiança nos pares “normalizados” e obriga o dissonante a constantes justificações. Keiko (e cada um de nós) habita neste mundo desassossegado, balançando entre a necessidade de conformação e a sua própria essência singular, onde para se sobreviver há que abdicar dessa singularidade e aceitar o torpor dos sentidos: “As pessoas falam muito sobre a sociedade moderna, o individualismo, mas se alguém não se esforça por fazer parte da aldeia é um estorvo e acaba por ser pressionado por todos, acabando expulso”.

“Irasshaimasê”.

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