Nos últimos anos, tornou-se lugar-comum dizer que os últimos sobreviventes do Holocausto estão a desaparecer e que com eles desaparecerá também, para sempre, a memória em primeira mão do que experienciaram. Quem hoje em dia observa com atenção os escaparates das livrarias, sabe que as editoras estão a utilizar ao máximo o trunfo da autenticidade dos testemunhos para projetar um produto que, no geral, mais não faz do que saciar curiosidades mórbidas sobre o que se “passava” afinal dentro de um campo de concentração. Alguns dos mais conhecidos sobreviventes, como Ruth Klüger ou Imre Kertész, escreveram sobre como a vida nos campos era aborrecida. Lembramo-nos de cor, mas a ideia em determinado momento na biografia de Ruth Klüger é: preciso de narrar; a narrativa não prescinde de acontecimentos; a narrativa do sobrevivente espera leitores sedentos de ação; mas não há nada de extraordinário no quotidiano do campo; a existência ali era profundamente aborrecida; o que devo escrever?
O que restou de Auschwitz, ao contrário de tudo o que ali líamos, foi uma ideia desmedida de atrocidade que não se encaixa numa descrição do quotidiano concentracionário enquanto tedioso, e é provavelmente à procura desse suposto excitante dia-a-dia à espera da morte, de contornos quase pícaros, que o leitor e a leitora devoram livros decorados de forma coincidente com esta expectativa: um espaço rodeado de arame farpado ou o término de linhas ferroviárias (procure-se, por exemplo, a recente edição de Se isto é um homem pelos livros RTP/Leya).
Em Uma vida alemã (Objectiva 2017), o voyeurismo é menos inócuo, porque ouvimos um testemunho do lado dos “maus”, na senda daquilo que a ficção já tem vindo a oferecer ao longo dos anos sobre dirigentes nazis (A zona de interesse de Martin Amis ou As Benevolentes de Jonathan Litell). Brunhilde Pomsel trabalhou lado a lado com Joseph Goebbels, o temido ministro da propaganda do III Reich, e conta-nos aqui o que sabia e o que não sabia. Brunhilde morreria no ano passado com 106 anos, mas antes acedeu a deixar o testemunho a um conjunto de cineastas alemães que realizaram um documentário com o mesmo nome (Ein Deutsches Leben, no original). Thore D. Hansen é jornalista e faz no final uma curta exegese de excertos do testemunho da ex-secretária, para auscultar o que é que ele nos pode ensinar para a leitura do tempo presente e futuro. A coincidência temporal entre a morte dos últimos sobreviventes e a ascensão da extrema-direita na Europa e de Donald Trump nos Estados Unidos, dá o mote para uma releitura didática do Holocausto, de forma a não se perderem os valores sobre os quais o projeto europeu se construiu, indelevelmente associados àquela experiência traumática em solo europeu. A pergunta que percorre o prefácio e, por extensão, todo o livro é: “Será que se estão a repetir os obscuros anos 30?” Ouvir o lado de quem vivia uma vida normal enquanto beneficente do regime criminoso é um exercício interessante do ponto de vista da transformação de perpetradores em vítimas: Brunhilde é uma heroína? A sua narrativa contempla o desinteresse pela vida política, comum a grande parte dos alemães da república de Weimar, e a entrega a um regime que manejou a Prússia sociológica de forma perfeita, tornando a indiferença política da população num instrumento para a execução dos seus propósitos mais atrozes. Até aqui nada de novo. Porém, quando lemos sobre como poderia ter escapado ao bombardeamento de Berlim pelas forças aliadas já no fim da guerra e volta por um mero sentido de dever ao local de trabalho, surge a questão sobre como interpretarmos Brunhilde enquanto exemplo de uma massa a quem as perseguições e os extermínios da guerra nada diziam. Cumprir um dever é um crime? Ter sentido de responsabilidade laboral é um crime? À luz do demónio prussiano que enquadra o nazismo enquanto ideologia capaz de um crime hediondo e único, é – como Arendt ou Bauman nos demonstraram. Mas Uma vida alemã trata também da inacreditável sobrevivência da própria nos últimos dias antes da rendição no bunker junto com a louca família Goebbels, sobre como se espantou da primeira vez que ouviu o tranquilo chefe discursar perante uma plateia e milhares de alemães que gritavam histrionicamente “guerra!”, sobre como a amiga judia Eva Löwenthal desaparecera ainda antes da guerra se tornar presente para ela, sem que ela ou a família tivessem disponibilidade para pensar se Eva e todos os judeus precisavam de ajuda.
https://www.youtube.com/watch?v=nZr45w7iubI
Estamos perante uma mulher centenária, que se lembra da própria vida e sente que urge contá-la, mas não somos ingénuos o suficiente para acreditar que tudo o que descreve não inclui adaptações decorrentes daquilo que dela se espera enquanto alemã: há uma teorização sobre a manipulação de massas ao longo de todas as suas descrições que faz parte de um discurso estabelecido e conhecido de todos os alemães (inclusive da atual extrema-direita que o deseja rever). Porém, em determinados momentos, talvez sem que se dê conta, Brunhilde é brutalmente honesta, utilizando o cariz didático que se lhe quer impor para colocar os pontos nos i: “(…) hoje as pessoas acham que na altura teriam feito mais pelos pobres judeus. Estou disposta a acreditar que estão a ser sinceras quando o hoje o afirmam. Mas também não o teriam feito. Depois de os nazis terem chegado ao poder, todo o país estava como que sob uma campânula. Estávamos, na verdade, todos dentro de um gigantesco campo de concentração.” A comparação é audaz, mas aponta-nos o dedo de forma certeira: “(…) foi a indiferença das pessoas que permitiu que tudo acontecesse. Não quero de forma alguma associar esta realidade a pessoas específicas (…). O facto de nos sentarmos hoje de novo em frente da televisão a assistir a esta história terrível na Síria, o modo como centenas de pessoas fogem de lá. E depois não deixamos de passar alegremente o nosso serão. Não mudamos a nossa vida por causa disso.”
Atrevamo-nos, portanto, a ler esta obra com empatia, colocando-nos no lugar de Brunhilde, com toda a solidariedade e boa vontade que consideramos ter, nós os arautos dos direitos humanos pós-Holocausto, mas contemporâneos de outros desastres. O que é, afinal, viver “uma vida alemã”?
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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Obrigado eu, José.