Gorki, um dos mais eminentes escritores da sua geração, é um homem da sua época. No entanto, mais de um século depois da sua génese, o texto de “Veraneantes”, como tantas obras dos seus contemporâneos, surpreende pela sua intemporalidade e alcance assombroso do largo espectro da psique e das relações humanas.
Escrita em 1904, antecipa-se à histórica revolta de 1905, culminar de uma crise crescente e irreversível e embrião da revolução de 1917, que derrubaria o regime czarista e instauraria o comunismo no então ainda Império Russo.
Inicialmente uma manifestação pacífica de protesto, cujo destino era o palácio imperial, exigindo melhores condições de trabalho e remuneração digna, degenerou num massacre, quando a guarda imperial abriu fogo sobre a multidão de um milhão e meio de almas.
É neste contexto de iminente viragem de página do grande livro da História que encontramos um conjunto de privilegiados em férias na datcha (“casas de veraneio nos arredores das grandes cidades russas onde tradicionalmente os citadinos abastados passavam o Verão”, informa-nos o tradutor António Pescada na folha de sala) dos Bássov. A ausência de uma acção definida é inicialmente desconcertante, mas cedo emerge, como cerne do enredo, o desconforto que grassa no grupo.
As paixões e ódios de estimação, as invejas e desforras adiadas são o combustível, em fogo lento, que move toda a dinâmica da peça. Centrada nas palavras e nos sonoros silêncios, milagrosamente mantém o público em pulgas por descortinar o segredo seguinte.
É esta a magia dos grandes textos: a sua universalidade e a maleabilidade, facilitados pela forma magistral como captam não apenas o zeitgeist de toda uma época, como o projectam para um futuro indefinido, centrando-se nos aspectos inerentemente humanos, nas contradições e emoções de todo o elenco.
Quando à primazia da excelente matéria prima (o texto de “Veraneantes”), juntamos uma cenografia magistral e uma encenação cativante para o público e desafiante para o elenco, estão reunidos os ingredientes para uma noite memorável de teatro.
A cenografia de F. Ribeiro consegue a proeza de manter todo o elenco em palco quase em permanência, sem perturbar o decurso da acção, através de um cenário habilmente retalhado e com diferentes inclinações, permitindo vários planos visuais simultâneos.
A encenação de Nuno Cardoso (assistido por Pedro Jordão) utiliza o cenário de modo cuidado, mantendo o público entretido não apenas com os actores protagonistas em determinado instante, como também com a interacção que decorre em simultâneo noutros locais da cena entre o restante elenco, em constante movimento, “coreografado” por Marco da Silva Ferreira. O palco como plano aberto, de grande angular, deixando o público intuir as palavras que se seguirão.
Também a música (coordenada por Pedro Lima, assim como a sonoplastia), frequentemente tocada ao vivo por muitos dos actores, enriquece deveras a experiência dramática. O intervalo, por exemplo, chega com o elenco entoando em coro um conhecido hino estival. O mote para o tom de muitas cenas, como se uma experiência cinematográfica se tratasse, é dado pela música em palco, uma guitarra dedilhada ou um piano improvisando uma balada que se perde distraída entre palavras.
Mas o elemento superlativo da peça é mesmo o seu elenco.
A experiência de Dinarte Branco (Chalimov, o clássico poeta consagrado em crise de inspiração), Cristina Carvalhal (Maria Lvovna, a mulher que todos gostam de atiçar e criticar, pela sua força e independência), Maria João Pinho (Varvara Mikháilovna, a discreta e assertiva protagonista do enredo, agindo como coro trágico ao longo da peça, em conflito constante entre as convenções e a sentimentalidade, nas teias de uma rotina entorpecedora de que não parece conseguir libertar-se) e Iris Cayatte (Kaléria, a típica poetisa romântica, dada a achaques e explosões sentimentais, mas vazia como a sua poesia comicamente barroca), cruza-se com a frescura e talento da jovem Carolina Amaral (Sónia Lvovna, sonhadora jovial, cobiçada por quase todos os homens da casa) e os surpreendentes Rodrigo Santos (o brutal Suslov, mulherengo e violento, ácido e cínico em todas as suas palavras e actos, é a encarnação da violência que se anuncia, destruidora da paz podre em que vive aquela pequena burguesia) e Afonso Santos (Vlass, o bobo de serviço, com uma paixão secreta e um desdém venenoso por todo aquele jogo de máscaras de que é parte).
A referência a quase todo o elenco e equipa técnica é propositada, pois outra abordagem a este trabalho cuidado de actualização de Gorki para o séc. XXI passaria, salvo melhor opinião, por displicente e incompleto.
No entanto, o esforço de actualização fica-se pela cenografia e encenação, já que do texto continua a ressoar o presente. Retrato de uma classe alta remetida ao conforto solitário de uma condição privilegiada, desligada do exterior, centra-se nas suas passageiras obsessões e irritações, reflexos egóticos e projecções de futuros ironicamente fora do seu alcance, como a verdadeira liberdade para amar e ser amado, de definir com total independência o rumo das suas existências.
Bem para além das implicações sociológicas e até panfletárias imanentes a todo o enredo, é a condição humana em todo o seu esplendor que aqui reencontramos. A liberdade e a felicidade não são mais do que invenções convenientes para nos manter ocupados durante algum tempo. Em férias da prisão das nossas conveniências e rotinas, todos somos veraneantes irremediavelmente condenados a regressar.
Em cena no Teatro Nacional S. João até 18 de Março. Em Abril, no Teatro D. Maria II.
Foto ©João Tuna
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