home Didascálias, TEATRO Vida do Grande Dom Quixote De La Mancha e do Gordo Sancho Pança – Teatro do Bolhão, 15/11/2018

Vida do Grande Dom Quixote De La Mancha e do Gordo Sancho Pança – Teatro do Bolhão, 15/11/2018

A encenação deste Vida do Grande Dom Quixote De La Mancha e do Gordo Sancho Pança, a que assistimos num Teatro do Bolhão bem preenchido, é a versão de António José da Silva (dramaturgo do século XVIII) da obra-prima cervantina. Há, portanto, dois aspetos a ter em conta: o texto original corresponde ao chamado “Dom Quixote do Bairro Alto”, aludindo à reputada encenação apresentada pelo dramaturgo em Lisboa, que contém referências à realidade portuguesa. Por outro lado, esta versão é portuguesa e pertencente à literatura portuguesa, não tanto pela sua publicação original, mas pela revisitação que dele foi feita respetivamente nos séculos XIX e XX por Camilo Castelo Branco e Bernardo Santareno. Ambos trouxeram para o centro das suas obras a figura de António José da Silva, “o Judeu”, acusado e assassinado pela Inquisição portuguesa, pese embora o seu sucesso à altura em Portugal. É impossível, nesse sentido, olhar para esta encenação como um produto de Cervantes, tal é a dimensão que José da Silva ganhou na literatura portuguesa e, em consequência, também a sua versão do Dom Quixote.

Tais fatores tornam esta encenação ainda mais aprazível, mesmo pensando, como acreditamos ser o caso de muita gente, estar a ver e ouvir parte da obra pensada por Cervantes. Não o é e ainda bem. Poderia bastar a mágica interpretação de António Capelo e Paulo Calatré, respectivamente nos papéis de Sancho Pança e D. Quixote, para recomendarmos este espetáculo. É Sancho Pança quem, na verdade, acaba por ser o centro desta versão, como aquele que, ainda que em registo de ingenuidade, acaba por ter que resgatar Quixote das encrencas em que se mete, por causa dos seus sonhos megalómanos e irrealistas, envolvendo-se, também ele, nas suas próprias tropelias, por via da vontade de poder. Poderia bastar, dizíamos, mas não o faremos, pois seria injusto concentrar a nossa atenção na poderosa prestação dos protagonistas, quando este espetáculo, na simplicidade de quem pega num texto de setecentos e, na sua forma de fazer teatro popular, o transporta diretamente para os nossos dias, os do pós-modernismo em atualização pendente, de forma tão acertada. Curiosamente, a humildade desta encenação consegue fazer aquilo que tantas vezes se vem tentando de forma infrutífera, por via do teatro pós-dramático ou excessivamente simbólico, documental, experimental.

Este Sancho Pança e este Quixote, a trote pela península, ultrapassando obstáculos físicos, animais, humanos, sociais e políticos, em encenação de registo predominantemente naturalista, justificam a sua pertinência pela ligação direta a este tempo, em que vivemos na dualidade do sonho tecnológico, que tudo permite atingir, e da desesperança relativamente a um futuro pouco promissor. A ambivalência do sonho – esperança vs desilusão – é o projeto quixotesco da actualidade, mais do que nunca, e rirmos da patetice pseudo-racional de Quixote, e da absoluta de Sancho Pança, é uma ótima forma de lembrarmos que, perante a estandardização, há que abraçar o duplo no humano, tão inseparável como inconciliável, como se refere no dossier de apoio, em citação de Edgar Morin: “O Dom Quixote de Cervantes está marcado por uma dupla ironia: a crítica do imaginário pela realidade, encarnada pelo olho crítico que Sancho Pança deita a D. Quixote, mas também a crítica da realidade prosaica pelo imaginário, fonte de poesia, crítica esta encarnada pelo cavaleiro errante, D. Quixote.”

A encenação de Kuniaki Ida, na errância entre esses dois pólos, entretém o público de forma muito eficiente, com um palco bem apetrechado de objetos reais (como sejam as espadas, as carroças ou os instrumentos musicais) e simbólicos (como os pilares movediços que fazem as vezes de árvores, de tempestades, de lugar de passagem entre mundos imaginários e materiais). Os momentos musicais bem orquestrados dão o toque final de excelência a um texto bem adaptado, magnificamente interpretado e consciente daquilo que pretende e consegue fazer passar, de forma indefetível.

A peça segue em digressão pelo país em 2019:

  • 25 e 26 de janeiro, Casa das Artes Famalicão
  • 5 de abril, Teatro Municipal de  Bragança
  • 12 de abril, Teatro Municipal de Vila Real

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

Foto © Pedro Figueiredo

Mais crítica de Teatro AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *