home Antologia, LITERATURA Uma Vindicação dos Direitos da Mulher – Mary Wollstonecraft (Antígona, 2017)

Uma Vindicação dos Direitos da Mulher – Mary Wollstonecraft (Antígona, 2017)

A vida de Mary Wollstonecraft não decorreu propriamente em sossego e recolhimento. Agitada e repleta de incidentes, nos seus escassos 38 anos, ela apresenta, pelo contrário, aspectos tantalizantes para qualquer leitura que ceda ao simplismo «biografista». É extremamente tentador (embora precipitado) entender na biografia desta autora uma chave para entrar na sua obra; no entanto, adverte lucidamente Maria Luísa Ribeiro Ferreira, no seu prefácio: «o objectivo pretendido [em Uma Vindicação dos Direitos da Mulher] não é a resolução de problemas pessoais nem a reparação de situações particulares» (p.7).
Wollstonecraft nasceu no seio de uma família afluente. O pai era o típico fidalgo bem-intencionado, mas excessivamente impulsivo, desorganizado, ou, simplesmente, um estroina incapaz de levar a bom termo os seus propósitos de se tornar um próspero senhor rural. Criatura intempestiva, demasiado amigo do álcool, tornar-se-ia uma figura lastimosa, tirano de uma mãe que, o mais das vezes, cabia a Mary proteger. Com apenas 19 anos, Mary Wollstonecraft troca a casa da família por um lugar como dama de companhia de uma rica viúva na cidade de Bath. Começava então o seu conhecimento – e futuro escárnio – dos costumes e, sobretudo, dos vícios e ridículos das classes altas. Juntamente com as suas irmãs, Eliza e Everina, e uma amiga de juventude, Fanny Blood, Mary fundou uma escola para raparigas em Newington Green (então, nos arredores de Londres). O êxito do projecto, no entanto, não foi o suficiente para afastar o pesadume que se abateria sobre este reduto feminino. Eliza perdera uma filha, enquanto aguardava a possibilidade de se divorciar do marido. Fanny Blood, que contraíra tuberculose, rumou a Lisboa, para se casar. Mary viajou até à capital portuguesa, onde se juntou à amiga, que lhe morreu nos braços, pouco tempo depois de dar à luz uma criança que, a breve trecho, também perderia a vida. Todos estes acontecimentos tiveram consequências nefastas em Mary Wollstonecraft, que caiu num período de profunda depressão, situação apenas agravada com o encerramento forçado da escola de Newington Green, que precipitou a escrita de Thoughts on The Education of Daughters (de 1786). Estes ensaios ainda não tinham, naturalmente, a maturidade, nem o alcance, de – e destinaram-se, pelo menos em parte, a fazer face à pressão dos credores. Posteriormente, Wollstonecraft teve de assumir as funções de preceptora junto da família de um aristocrata, o Visconde de Kingsborough, cuja propriedade se situava no Condado de Cork, na Irlanda. A situação não duraria muito, devido a tensões entre a Viscondessa e a perceptora. Ao que parece, as filhas do casal sentiam-se mais à vontade com Mary, cuja companhia preferiam à da mãe… De regresso a Londres, Wollstonecraft conseguiu fazer publicar o seu romance Mary, a Fiction, o qual, de acordo com a autora, se centrava na «mente de uma mulher de intelecto».
A publicação de Reflections on the Revolution in France, de Edmund Burke, precipitou um amplo conjunto de reacções. A primeira a tomar a forma de um livro partiu de Mary Wollstonecraft – A Vindication on the Rights of Man – e tornou-se um enorme êxito. A autora, no entanto, não se limitou a contrariar as posições de Burke em relação à Revolução Francesa: em 1792, rumou a França para ter oportunidade de conhecer em primeira mão as consequências do grande tumulto que agitava aquele país e começava a modificar a face da Europa. Os anos franceses de Wollstonecraft coincidiram com o recrudescer do radicalismo. Além de se ter ligado a uma roda de simpatizantes da revolução, Mary envolveu-se com Gilbert Imlay, de quem teria uma filha. Este americano, explorador e viajante afamado – que tinha mesmo publicado um livro em que dava conta das suas façanhas –, aliava, desafortunadamente, a deslealdade e a falta de carácter aos seus predicados de aventureiro. Os pormenores são demasiado intricados e sórdidos. Facto é que, por manigâncias do americano, Mary viajou até à Escandinávia, alegadamente como uma espécie de representante daquele notável «empreendedor». Como por vezes sucede, o saldo literário foi inversamente proporcional ao enredo reles: Letters Written during a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark, de 1796. Mary Wollstonecraft passou quatro meses naquela região. Embora não tivesse empreendido a jornada durante os rigores do Inverno, a verdade é que viajava com a filha, de apenas um ano, e só com a companhia de uma criada francesa. O relato evidencia plenamente os poderes de observação da autora, a sua disponibilidade para o outro, o diferente, o inesperado – «Aos viajantes que exigem que todas as nações se pareçam com as suas terras de origem, mais valia ficarem em casa.»
Regressada a Londres, Mary Wollstonecraft acabaria por se reaproximar de William Godwin, com quem veio a casar-se. Há aqui alguma ironia. O autor de Caleb Williams, mas, sobretudo, o pensador radical de Inquiry Concerning Political Justice, que advogara a liberdade das ligações, a emancipação, cedeu ao apelo institucional do matrimónio. O casal viria a ser pai da futura Mary Shelley, mas Wollstonecraft morreria escassos 10 dias depois de dar à luz, pouco tendo usufruído do ambiente de recolhimento que a vida com Godwin lhe poderia ter oferecido. A autora deixou inéditas várias obras, que William Godwin editou com desvelo e uma abertura de espírito algures entre o cândido e o descuidado: não escamoteou as ligações de Mary com Imlay, entre várias outras indiscrições. Mas teve um papel naturalmente inestimável para a posteridade de Wollstonecraft.
Hoje em dia – e é bom que se frise a expressão «hoje em dia» –, a fama de Mary Wollstonecraft assenta primordialmente em Uma Vindicação dos Direitos da Mulher. O reconhecimento – e, mais do que ele, a consagração de um consenso justo – foi tardio, extraordinariamente tardio. No seu tempo, apesar de alguma receptividade, foi muita a incompreensão. E, como se poderá imaginar, a animosidade campeou perante um livro desafiante, que abalava estruturas solidificadas, que parecia impossível sequer questionar. Para citar apenas um só exemplo – embora este seja ilustre –, Horace Walpole, autor de O Castelo de Otranto, chamaria a Wollstonecroft «uma hiena de saiote». E, conforme frisa Maria Luísa Ribeiro Ferreira, ao prefaciar esta que é primeira edição portuguesa da obra de Wollstonecraft, a Vindicação «foi durante três séculos ignorado pelas editoras portuguesas» (p.5).

Valor primordial, sobre todos, é para Mary Wollstonecraft, a liberdade, descrita como «a mãe da virtude» (p.83). É dela que nasce a possibilidade de lucidez e, por conseguinte, o horizonte desejável da igualdade de tratamento. Ao longo de Vindicação, Mary Wollstonecraft leva a cabo aquilo que Maria Luísa Ribeiro Ferreira formula como a «desmistificação dos comportamentos do “sexo fraco”» (p.15). A autora começa numa espécie de método socrático, expondo «dúvidas», questões hipotéticas – «ou a natureza operou uma grande diferença entre o homem e a mulher ou a civilização que até agora teve lugar tem sido muito parcial» (p.35) –, que criam a estrutura bipartida que marcará todo o seu trabalho. Não que Vindicação seja uma exacta batalha campal – «Não desejo que [as mulheres] tenham poder sobre os homens, mas sim sobre si mesmas.» (p.124) –, mas o campo está bem definido. E nele se estende a intransigente de recusa de uma obediência cega e irreflectida – «Amo o homem como meu semelhante; mas o seu ceptro, real ou usurpado, não é extensível à minha pessoa, a não ser que a razão de um indivíduo exija a minha homenagem; e, mesmo assim, a submissão é à razão e não ao homem.» (p.83) Uma frase que não se limita a sê-lo. Não se trata aqui de fazer frases – é a própria autora quem o diz: «Ocupar-me-ei de coisas, não de palavras!» (p.39) –, mas de, através de um cuidado superlativo na escrita, defender um conjunto de princípios teóricos bem definidos.
No seu prefácio, Maria Luísa Ribeiro Ferreira chama claramente a atenção para o facto de Wollstonecraft não ter sido de forma nenhuma complacente para com o seu próprio género. O seu propósito de vindicar e exaltar os direitos e a condição da mulher não a impede de ser tão exigente com homens quanto com mulheres. Quando chega o momento de verberar a moleza, a cedência ao preconceito, à facilidade de definir os géneros como contentores separados, em que nada pode influir, a autora é igualmente impiedosa. «Espero que o meu próprio sexo», dirá Wollstonecroft, «venha a desculpar-me se o trato como criaturas racionais, em vez de lhe lisonjear as fascinantes graças e de o contemplar como se estivesse num estado de perpétua infância, incapaz de agir por si» (p.38). É nesse sentido que a autora preconiza uma educação integrada e mista – «a constituição dos rapazes não ficaria arruinada pela estroinice prematura que torna agora os homens tão egoístas ou põe as raparigas fracas e vãs, por via da indolência e dos interesses frívolos» (p.297) E por isso mesmo verbera o que chama «falso sistema de educação» (p.36). Segundo Mary Wollstonecroft, este modo de conceber o ensino, «recolhido em livros sobre esta matéria, escritos por homens que consideram o sexo feminino como mulheres e não como criaturas humanas», estão, segundo defende, «mais ansiosos por fazer delas amantes sedutoras do que esposas afeiçoadas e mães racionais; e o entendimento deste sexo tem fervilhado a tal ponto com esta especiosa homenagem que, neste século, as mulheres civilizadas, salvo algumas excepções, mais não anseiam do que inspirar amor, quando deviam acalentar uma ambição mais nobre e reclamar respeito pelas suas aptidões e virtudes». Na sua cruzada, em busca de uma situação igualitária e justa, a autora opõe-se a nomes da grandeza de um Rousseau, um dos mais contrariados, mesmo se noutros pontos é louvado, ao longo de Vindicação.
Em Letters Written during a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark, escreve Mary Wollstonecraft: «Durante a ceia, o meu anfitrião disse-me directamente que eu era uma mulher de observação, uma vez que lhe fazia perguntas de homem.» Um toque de ironia, da parte da autora, este registo do preconceito alheio. Um que toda a Vindicação procura esconjurar, com os seus postulados – «[A mulher] Foi criada para ser joguete do homem, a sua roca, e tem de retinir aos seus ouvidos sempre que ele dispensa a razão e escolhe ser entretido.» (p.78). Defesa intransigente da emancipação feminina, Uma Vindicação dos Direitos da Mulher é um longo libelo contra um estado de coisas que a mera inércia, a passagem demasiado sossegada do tempo e o medo fizeram prevalecer. Que a sua acção faça ainda sentido, eis não apenas uma nota de intemporalidade de um clássico, mas a pertinência histórica de um legado ainda por cumprir integralmente: a condição feminina.

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