Vencedora do Prémio APAV para a Investigação de 2019, a tese de Doutoramento Virar Travesti: Trajetórias de Vida, Prostituição e Vulnerabilidade Social de Nélson Alves Ramalho foi publicada pela Tinta-da-China no final do ano passado, 14 anos depois da morte de Gisberta Salce Júnior. O livro resulta de um processo de investigação científico de cinco anos durante o qual Ramalho teve contacto direto com a comunidade que pretendia retratar, trabalhando no local com a população travesti e trabalhadora do sexo de Conde Redondo.
Para além da reclamação da visibilidade destas vidas normalmente escondidas, uma visibilidade proporcionada através das entrevistas e da presença direta no livro das próprias palavras destes sujeitos num processo de humanização e reconhecimento, o livro aborda ainda a própria configuração do “travesti”, categoria contestada dada a sua ambiguidade (de género, linguística – com significados distintos em Portugal e no Brasil, por exemplo – de processos de transformação corporais) e o seu uso histórico como equivalente a outras categorias identitárias; “travesti”, uma categoria usada pelas pessoas entrevistadas para a autodeterminação, é aqui entendida como uma forma plural de fazer e apresentar o género, não dependente mas podendo também incluir alterações corporais, que o autor distingue de outras categorias usadas para identificar os processos de transição e fluidez de género.
Ramalho adota um olhar intersecional, analisando a forma como não só o género mas também a classe influenciam estas trajetórias de vida, assim como a própria auto-identificação de cada uma destas pessoas. A fragilidade destas vidas é um dos pontos centrais da tese, quer no que toca à sua exclusão social, quer na própria vulnerabilidade física e económica, não deixando de apresentar um retrato plural que passa também por histórias pessoais sobre o seu passado ou as suas redes de apoio, laços de afeto e experiências diárias.
O primeiro capítulo do livro aborda questões relacionadas com a própria definição (determinada academicamente, cientificamente ou pessoalmente) de “travesti”; o segundo olha para as existências destas pessoas, para o seu passado, estruturas familiares, as primeiras experiências como trabalhadoras do sexo, permitindo um olhar mais próximo e personalizado. Segue-se uma configuração do espaço onde vivem e trabalham, relevante para entender como influencia, condiciona ou determina as suas vivências. Um quarto capítulo aborda a (re)construção corporal, assim como a multiplicidade de formas como construções de feminilidade são reconfiguradas, demonstrando a complexidade e as formas plurais de identificação e classificação sexual e de género. Um quinto capítulo olha para a violência, vitimação e transfobia a que estes sujeitos estão expostos, abordando os casos de Gisberta e Luna, nomes familiares pela forma como as suas vidas foram interrompidas violentamente, e que despoletaram um debate para a necessidade de políticas de proteção que combatam a profunda discriminação ainda experienciada por estas pessoas. Este capítulo dialoga com o seguinte, em que Ramalho enuncia redes de apoio formal (projetos de inclusão social, associações LGBT, serviços sociais) e informal, como os amigos, as famílias de escolha, as pessoas com quem trabalham e outras redes de afeto. Um glossário de termos usados no mundo do travestismo e do trabalho sexual encerra o livro, tornando estas experiências mais inteligíveis para um público menos familiarizado com este universo.
Virar Travesti é um pertinente estudo sobre a complexidade destas pessoas, aqui trazidas pelas palavras das próprias, assim como um olhar para a necessidade de conferir segurança, dignidade, reconhecimento e igualdade a sujeitos cujas identidades não correspondem a sistemas binários de configuração sexual e de género, combatendo assim o estigma e a violência a que muitas são sujeitas quando lhes são proporcionadas formas de apoio e resistência.
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