No Teatro da Trindade, ali à beira dos desafios nocturnos, está em cena Zoom, de Donald Margulies, traduzido e encenado por Diogo Infante. Em palco, Sandra Faleiro (Sarah), João Reis (James), Sara Matos (Mandy) e Virgílio Castelo (Steve). E como vale a pena ir vê-los! Uma peça enternecedora, divertida e que coloca o dedo, de forma curiosa, em algumas feridas tão actuais.
Como queremos nós ver a vida e, sobretudo, como pretendemos levá-la? Sarah, a fotojornalista, regressa de um cenário de guerra, onde vivenciou uma experiência de quase morte ao ter sido vítima da deflagração de uma bomba. Para além das escoriações visíveis, traz na bagagem dores mais profundas e ocultas por ter perdido o seu amante Tarik, o guia autóctone, por quem se apaixonou e com quem se envolveu, após a partida do seu namorado, James, que agora procura recuperar Sarah e a relação entre ambos.
O regresso ao conforto e à segurança do lar é um choque tremendo para Sarah. O dilema entre a vida pacata «na metade do mundo onde as pessoas têm comida para comer e não andam para aí a matar-se uns aos outros» e o sentimento de utilidade e de intervenção social, próprio do seu trabalho e justificativo dos perigos que constantemente corre, levam-na a questionar a sua capacidade de viver uma vida regular. Por outro lado, James está cansado do risco, da adrenalina, da miséria e sofrimento vivenciados. Pretende casar-se e ter filhos, ficar em casa ao lado de Sarah e não mais temer pelas suas vidas.
Steve, velho amigo de Sarah e de James, apresenta-lhes Mandy, a sua muito jovem noiva, rapariga pueril e aparentemente fútil, dotada de uma ingenuidade adequada à sua idade e de uma visão a preto e branco da realidade, que representa um delicioso contraponto com a complexidade de Sarah e o desejo de acomodação latente em James. Sara Matos veste impecavelmente a pele de Mandy e conquista várias gargalhadas no público.
Virgílio Castelo é um Steve muito credível, homem maduro que, depois de uma longa relação com uma mulher sofisticada, percebe que pretende para a sua vida algo linear e simples. A quem afinal assiste a razão? Mostrar ao mundo os horrores da guerra, através de imagens e reportagens, esbofetear o comum dos mortais para a dura realidade é a função de Sarah, o seu modus vivendi, a convicção da importância de desempenhar uma missão de carácter social e cultural. Mas o que faz ela efectivamente para mudar o curso da História? É a sua intervenção como fotojornalista suficiente? Ver e evidenciar a desgraça torna-se ou não num mero vício de adrenalina, numa umbiguista paixão pelas emoções intensas, pela coragem e sofrimento alheios? Numa narcisista necessidade? A dicotomia entre Sarah e Mandy leva o espectador a questionar-se, a pôr em perspectiva a sua própria percepção do mundo, e é esta farpa mais duradoura, mais do que o humor, com que nos bandarilha e brinda esta excelente peça de teatro.
James, irrepreensivelmente interpretado por João Reis, é talvez a súmula entre Sarah e Mandy, porquanto representa o repouso cansado de um guerreiro sequioso da pré-reforma. Ele é o olhar para o decurso de uma vida, a meia-idade por excelência e a aceitação das verdades mais básicas e simples, mas nem por isso destituídas de mérito, a necessidade de segurança, de descendência, de uma pacata relação de companheirismo. James é o homem que se descobre e aceita como comum, apaixonado, e que nos leva a entender como natural, legítima e madura a aparentemente bizarra escolha de Steve.
Zoom é uma peça descontraída, divertida e actual, da qual saímos alegres e bem-dispostos, felizes com a decisão de optarmos por uma noite de teatro, em detrimento dos bares e da agitação de uma Lisboa cosmopolita e, mais ao fundo da Rua da Trindade, apercebemo-nos que trouxemos matéria menos etérea para meditar: Quem somos? Sarah? James? Steve ou, afinal, surpreendentemente, Mandy?
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