Chuva num festival ao ar livre, como o NOS Primavera Sound, condena as actividades à partida. As selfies ficam desfocadas por falta de luz, os vídeos fraquinhos pelo mesmo motivo, as movimentações no recinto são mais pensadas, para poupar a farpela comprada de propósito para o novo look festivaleiro, e a coroa de flores na cabeça perde sentido, porque ninguém vai reparar nela entre os pingos da chuva.
Por irónico que possa parecer, o conforto, mesmo que percepcionado apenas, joga um importante papel nestes eventos, principalmente tendo em conta a faixa etária predominante por estes dias no Parque da Cidade, que não tirou férias para ir a um festival. Chega de um dia do trabalho e quer disfrutar de tudo o que o bilhete que comprou lhe promete: boa música, locais para descansar as perninhas e pôr a conversa em dia, comida acessível e rápida de comer.
O NOS Primavera Sound, mesmo diante da promessa de chuva épica que não se concretizou, tem sabido estar à altura de quem o procura, com um cuidado pouco usual em todos estes aspectos, criando um ambiente aprazível e acolhedor, e preservando o pulmão da cidade do Porto, mesmo com milhares de pedestres espalhados por parte considerável da sua extensão.
No dia de estreia, faltaram mesmo concertos de espantar (com uma excepção notável e uma menção honrosa), daqueles que evocamos ao comparar listas de eventos marcantes.
Rhye trouxe um concerto que não casa com espaços festivaleiros. A música continua bela, de grande fragilidade e bom gosto nas instrumentações, nas harmonias, no minimalismo. Os temas chave passaram pelo alinhamento, mas faltou ousar e adaptar o espectáculo ao local onde decorreu, responsabilidade do artista e da sua produção e não da organização do festival. Uma oportunidade perdida.
Father John Misty é um músico experiente. Como Josh Tillmann, foi baterista dos Fleet Foxes, cujo álbum de estreia celebrou uma década no mês passado. Cansado da rotina e das ideias fixas de Robin Pecknold, criou um alter-ego entre o dandy, o escroque existencialista e mal-dicente e o bon vivant sofredor. A esta fórmula, juntou longas letras de tarimba quase literária e deixou cozinhar em lume brando. Já lá vão 4 álbuns, em crescendo de qualidade e alcance de públicos e a fonte ainda não parece ter secado, como prova este mais recente God´s Favourite Costumer (Sub Pop, 2018), recheado de canções auto-deprecatórias e letras de antologia.
Ao vivo tem tudo para dar errado, mas com grande arte resulta na perfeição.
Em Barcelona foi assim:
https://www.youtube.com/watch?v=Ef7LN2jpKdg&app=desktop
As letras extensas são conduzidas por um colectivo de músicos de excelência, que inclui um trio de sopros, baterista, baixista (que é também teclista), teclista e guitarrista. O som do palco é redondo e cheio, os tempos afinados ao milímetro na gestão de intensidades, da apoteose à contemplação. “Pure Comedy” foi o melhor momento da noite festivaleira. Com a melhor letra da sua carreira, foi gerida com mestria e entrega, com o público a cantar o que se lembrava e a acompanhar alegremente o refrão. Todos os álbuns fizeram parte do alinhamento, com destaque para os temas novos, como “Mr. Tillman” e “Disappointing Diamonds Are The Rarest of Them All”, que caíram que nem ginjas num alinhamento perfeito. São concertos destes que valem festivais e vendavais.
Lorde trouxe um espectáculo apontado a um público muito específico e claramente em minoria no NOS Primavera Sound: os adolescentes. Em contacto permanente com a plateia, actuou acompanhada por dois músicos nas teclas e nos beats e por um conjunto de bailarinos que ilustravam algumas músicas chave, como “Sober” a abrir o espectáculo, a inevitável “Royals” ou “Green Light”. Espantou o despojamento e simplicidade em palco, para uma estrela da dimensão global da neo-zelandesa, mas falta-lhe o salto para a idade adulta da sua carreira, ainda demasiado presa a uma juventude que tarda em passar, apesar das letras sobre festas e bebedeiras.
Tyler the Creator foi a desilusão da noite. Nem com um palco elevado e projecções catitas conseguiu disfarçar uma actuação que deixou a desejar outros tempos, talvez os do seu colectivo de boa memória, verdadeiros guerrilheiros sónicos chamados Odd Future. “Boredom”, a versão de “Biking” de Frank Ocean ou “911 / Mr. Lonely” não chegaram para equilibrar o espectáculo, embora, justiça lhe seja feita, tenha entusiasmado largas centenas de fãs que o acompanharam nos festejos.
Para compensar, tivemos a surpresa do talentoso Moullinex, com um espectáculo à altura do acontecimento e a pedir palco principal. O produtor nortenho sacou dos trunfos e trouxe tudo o que de melhor fez até agora, com um alinhamento sólido e festivo, sem descurar a qualidade musical e o público que se colou à festa.
Hoje a celebração continua. Apareçam, tragam amigos também.
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