Se ler for percorrer e descodificar a superfície textual, então não é possível “ler” A paixão segundo G.H. Não é possível estar “de fora”. A narradora convoca-nos e agarra a nossa mão, para que haja organização discursiva e a narração aconteça:
“Por enquanto eu te prendo, e tua vida desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem a tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri. No tamanho da verdade?” (p. 17)
Quando atravessamos o pórtico inicial, somos avisados por C.L.:
“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de «alma já formada». Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente ‒ atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.”
Agarramos a mão de G.H. Apertamos com força, duvidando se a nossa alma já está formada e acompanhamos a narradora-personagem. Aguardamos o embate. Vai ser doloroso, mas no fim poderá trazer “pouco a pouco uma alegria difícil”, como disse C.L.. Mas Clarice mentiu. Este livro não é como um livro qualquer. Depois de Janair, a empregada, se ter despedido, G.H., escultora, requintada, classe média, inicia uma limpeza no quarto de serviço. Para restaurar a ordem, para cumprir uma vontade assética. Contudo, nesse espaço interior à sua casa, mas externo aos limites da sua consciência, um encontro vai desencadear toda a sua desmontagem enquanto construção humana. Toda a narração / o discurso que se seguem são a reverberação desse grito mudo.
“De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.” (p. 47)
De mão dada, recordamos este momento, narrado apenas no dia seguinte. A aparição da barata inicia o momento da epifania, o momento-luz que passa a acender a reflexão da narradora sobre a verdadeira existência. O sujeito enunciador revela-se à medida que se vai apropriando verbalmente do fluxo das vivências que decorrem dentro de si. O movimento fenomenológico, a “aproximação” referida ao início, opera uma libertação da visão da narradora, que atravessa mundos para se encontrar. A travessia difícil, muitas vezes obscura, prenunciava-se já na epígrafe inicial: A complete life may be one ending in so full identification with the nonself that there is no self to die (Bernard Berenson).
“Dá-me a tua mão: vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.” (p. 100)
Esta belíssima edição da Companhia das Letras revela-nos o texto de Lispector, publicado pela primeira vez em 1964, com toda a atenção e cuidado. O posfácio de Carlos Mendes de Sousa, um dos grandes especialistas da obra da autora, ilumina o percurso, por vezes difícil, por um “texto maior da literatura do século XX” (p. 187). A literatura de Clarice (1920-1970) continua a desinquietar-nos, a quebrar os nossos automatismos, a desafiar-nos. É também em nós epifania, fulguração, travessia pelos “interstícios da matéria primordial”:
“(…) usa-me, usa-me pelo menos como túnel escuro ‒ e quando atravessares minha escuridão te encontrarás do outro lado contigo. Não te encontrarás comigo talvez, não sei se atravessarei, mas contigo.” (p. 101).
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