A crónica inscreve uma personagem / uma voz na ordem do tempo. Talvez seja por isso um dos géneros mais profundamente humanos, ao retratar o fugaz, face à impossibilidade do eterno. Dos tempos medievais ao jovem defunto Santiago Nasar, a narração é assim habitualmente perpassada por alguma nostalgia, pela memória de um fim anunciado. Em Deriva, a cronista Madalena Sá Fernandes convida-nos a percorrer os seus tempos. O passado, da Avó Petit e Tondela. Os dois lados da família, da esquerda à direita. As suas forças e fragilidades. Vai traçando um percurso de afirmação, de apaziguamento. E vai-me levando com ela. Mais devagar, no início; mais depressa, no final. É que o “«lembras-te» é um lugar seguro.” (p. 73). Sim, também me recordo do Ucal e das torradas. Lembro-me do jovem Beckham e do Fábio Assunção. Deslizo nas páginas como quem faz scroll.
A prosa segue solta, leve, com humor. Prende-me com o amor por Santo Agostinho e pela irritação pela falta de vírgula quando chamo um irmão. Passa pela Ucrânia e pelas redes sociais. Parece despojada, desinteressada. Como a mulher que “[e]screve, porque, na melhor das hipóteses, pode aparecer alguém. De preferência, ela própria.” (p. 41). Ela aparece, de facto, e inscreve-me no texto também.
Diz Gregório Duvivier, no prefácio (p. 9): “Gosto da importância que Madalena dá às coisas sem importância nenhuma. Mas gosto sobretudo da desimportância que dá a si mesma (…)”. Enquanto releio o texto, vêm-me à memoria as recentes e polémicas leituras sobre a obra da cronista, extraliterárias, sedimentares, cheias de si mesmas, como se diz em Inglês melhor do que em Português. Que ignoram que é precisamente na narração do pequeno evento, ancorado, marcado em género e tempo, que a crónica pode atingir o universal. Mesmo quando o texto parece mais frágil e exposto. Sobretudo quando parece mais frágil e exposto.
“Onde é que eu ia? Por aí fora e por aí dentro. À deriva.” (p. 229). Não vamos todos?
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