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Entrevista: Marco Martins

Revista Intro: Fala-me da génese do projeto. Que potencial é que viste na história da Joana Pereira Bastos, publicada no Expresso em 2021?
Marco Martins: Bom, era o desejo de fazer uma peça, um objeto que refletisse um pouco sobre estes 50 anos de 25 de Abril na perspectiva de figuras esquecidas pela história, secundárias ou terciárias.

São mesmo invisíveis. Nunca ninguém tinha ouvido falar disto.
Exato. Só se fala dos presos, não se fala dos filhos, da família dos presos. E dos capitães e de todo o processo político.

Os heróis.
Exato, os heróis. Os protagonistas. Os heróis e os vilões. E eu acredito que a História é muito mais feita do quotidiano e das pequenas histórias e é com elas que nos conectamos. Somos animais de histórias e, portanto, ligamo-nos muito mais à história do que aos factos e às datas. Quando eu li a reportagem há dois anos e tal, da Joana Pereira Bastos, no Expresso (aliás, foi a Mariana [Brandão, produtora] quem leu pela primeira vez e depois me passou a reportagem), para mim era muito evidente o lugar destas crianças como as vítimas silenciosas de um estado totalitário, da luta que os pais travaram em nome da liberdade, em nome de outros ideais e que elas não podiam participar. Com aquela idade, acabam por ser duplamente privadas da sua liberdade: por um lado, por um estado que é totalitário, por outro lado, por uma família que decide, em alguns dos casos, viver na clandestinidade e…

Decide por elas.
Esse lado da descendência e transmissão de pais para filhos também me interessava. E achei que era a perspectiva perfeita para encerrar as comemorações dos 50 anos de 25 de Abril.

Mas quando começaste tinhas algo alinhavado e depois do artigo desviaste o trajecto?
Tinha um convite para fazer um espetáculo de encerramento dos 50 anos do 25 de Abril. Tinha várias histórias possíveis e de repente quando vejo aquela pareceu-me muito especial. Também havia uma componente que me agradava da relação da dramaturgia com as testemunhas diretas, que estavam todas vivas. As crianças. Os pais na grande maioria também já faleceram mas muitos estão vivos e muitos dos presos políticos também.

E foram incluídos?
Sim. Entra o Domingos Abrantes e a Conceição Matos. Conceição Matos como um grande símbolo da resistência, a mulher mais torturada em Portugal e portanto tem uma vivência muito particular de todo este processo de resistência. Um pouco como símbolos dessa geração que esteve presa durante 10, 20 anos. Mas no processo de investigação também entrevistei os pais das crianças, mas não entram.

Acabaste por dar protagonismo à Manuela Canais Rocha na peça e no filme que se avizinha. Porquê?
Sim, o filme vem aí. A Manuela era, para mim, o exemplo mais trágico e com uma potência dramática maior nesta luta dos comunistas antifascistas e na resistência. Ela viveu na clandestinidade durante até aos 6 anos, só que era uma clandestinidade muito particular, sem qualquer tipo de contacto com o mundo exterior. Não conhecia outras crianças. Nunca foi à escola, não conhecia nada. Não conhecia o nome dos pais, era Mãe e Pai. Portanto, quando os pais são presos, todo o mundo dela abana. É a destruição de um certo mundo idílico em que só havia o pai e a mãe. Descobre que existia um mundo para lá daquela casa. Várias casas, porque eles mudavam de casa, mas mudavam à noite. Outro aspecto interessante: ela via muito mal e vivia isolada, portanto, não só era a ideia do isolamento. Como não podia ir ao médico ou ao oftalmologista, porque não estava registada, o pai ia-lhe trazendo vários óculos, que ela experimentava. E é uma história que me tocou particularmente. E a minha ligação à Manuela foi muito forte, ou seja, também acontece isso nestes processos, que é…

Empatia.
Empatia, exato. É um processo de empatia e ela compreendeu bem a importância de contar a sua história em palco e de a trazer para este processo.

Qual é o papel que a Arte, neste caso o Teatro, pode desempenhar na revelação destas narrativas ocultas do Portugal de hoje? Acaba por funcionar como contraponto para a narrativa oficial.
Quando comecei a trabalhar neste espetáculo, queria chegar a uma geração muito mais nova. Contar a história de uma forma que a cativasse. E, nesse sentido, contar a história de crianças que eram privadas da sua liberdade e que viviam fechadas em casa, parecia-me uma forma muito evidente de chegar até elas, porque é uma história facilmente relacionável. Depois a determinada altura na peça, decidi partir o palco a meio. Um lugar é o da História, onde a história é contada, onde estão os protagonistas, e o outro lugar é o do [tempo] contemporâneo, onde estão crianças de várias escolas da região de Lisboa. Fiz um casting muito alargado em vários liceus, em que lhes perguntava qual era a importância da liberdade, perguntas um pouco genéricas. Trago-as para o palco, são 16 crianças que estão na parte de baixo.

E são as mesmas do espectáculo da Culturgest?
Sim. E eles dialogam um pouco com a história e com o que se passa. Ou seja, fazem de espelho.

Contraponto.
E contraponto com o andar de cima. Portanto, concordo completamente contigo que a forma como nós ensinamos a História, muitas vezes, não é que seja chata, é distante e é fria. E portanto, trazer para o palco os protagonistas esquecidos… A peça teve impacto. Foi a primeira vez que a Culturgest teve nove datas seguidas, todas esgotadas, com pessoas de muitas gerações e provocou uma discussão.

E conseguiram trazer as escolas?
Sim, sim, havia sessões só com as escolas. Há um momento da récita em que há uma frase, que é a de Gonçalo M Tavares, em que se diz: os gestos não são só propriedade da história, mas são propriedades dos corpos. [A citação completa: “os gestos não são apenas propriedade dos corpos, mas também da História. Não são apenas movimentos. Há nos símbolos essa potência de ocupar o dia seguinte de modo manso, em posição de bom ouvinte, Ou em agressivo anúncio de terra a queimar, de gente para expulsar, de direitos para suprimir.”] E em que há uma “brincadeira”, um braço que se tenta levantar a fazer uma saudação nazi e eles estão a puxar para baixo. E nem de propósito, aparecem as imagens do Musk. E fiquei contente porque naquele momento eles tiveram a consciência histórica e política do que significava aquele gesto, algo que antes da peça não teriam.

É isso educar. Públicos e infantes. Porque optaste pelo teatro para este projeto? Era desde o início o que pretendias?
Sim, tem muito a ver com este trabalho.

E também vais fazer o filme, não é?
Sim, mas é posterior. E será diferente, com certeza. Veio mais de um impulso de ficção que começa a nascer. Ter mesmo uma criança de seis anos e conseguir imaginar aquele mundo começa a fascinar-me. E é inevitável passar para o filme, neste caso.

O filme é mais permanente também. Não tem a instantaneidade e imediatismo do Teatro.
Temos um acordo com a RTP para gravar as nossas peças e elas permanecerem, porque são objetos mesmo muito distintos. A presença física daquelas pessoas enquanto testemunhas marca de facto um tempo e é muito distinto de um filme nesse sentido. Mas escolhi o Teatro porque ao longo destes anos tenho estado a desenvolver um trabalho com não-profissionais, com comunidades…

Para além das razões mais óbvias, de onde vem essa opção?
Mas o óbvio é o mais importante: a ideia de que eles não se constituem enquanto atores, no sentido estrito. São actores porque estão em palco num teatro, mas são muito mais testemunhas e intérpretes da sua própria história. Têm um papel mais narrativo. Nunca me ocorreria chamar um não-actor para interpretar uma peça clássica, como há pessoas que fazem. O teatro é construção de narrativas a partir da experiência pessoal, a partir da experiência de cada um. E de alguma forma, construi este universo quase utópico, de conseguirmos fazer teatro a partir do lugar direto da identidade de cada um. Portanto, com a propriedade e o direito de falar do que seja. E depois consigo construir à volta nisso.

O facto de seres tão respeitado pela crítica acaba por ser limitador ou libertador?
Não, não penso nisso. Eu penso só para a frente e no sentido do risco máximo. Ou seja, tento sempre trabalhar nos limites. Para mim isso é muito importante. E nesse sentido, se quiseres, se o meu trabalho não tivesse a projeção que tem, se calhar era mais difícil.

O teu trajeto artístico foca-se muito na invisibilidade, quer das pessoas, quer mesmo de emoções, sentimentos, sentidos que a sociedade ignora e chega a ser incentivada a rejeitar, muitas vezes. De onde vem esse impulso?
Em primeiro lugar, o meu interesse pelo outro e pela história individual de cada um. Depois a percepção de um certo apagamento de certos tratos sociais, de certas pessoas com quem nos cruzamos todos os dias na rua, nos metros, nos cafés e que me despertam uma grande curiosidade. E o Teatro é um lugar privilegiado de encontro. É uma das últimas assembleias que nos resta para vermos o outro. E estarmos com o outro. Emociona-me imenso estar aqui com estas crianças, numa audiência alargada, como se fosse uma grande assembleia. Sem sermos mediados. O processo é algo de que gosto muito. Eu trabalho muito mais em função do processo do que do objecto final. Daquele trabalho, daquela pesquisa, daqueles meses em que estamos juntos, tem que resultar um objecto final, numa peça. Mas isso é só uma consequência de um processo. E essa vontade de estar com essas pessoas, de partilhar um processo artístico é o grande motor. E obviamente, claro, desinquietar. Colocar perguntas. Porque tudo tende para a simplificação, todo o discurso mediático. Vimos isso agora, por exemplo, com os acontecimentos em Lisboa. O que é que realmente sabemos sobre aquelas pessoas, sobre o que é que as traz cá? O meu desejo é complexificar e colocar questões em relação a coisas que nos parecem óbvias.

Atendendo à forma como trabalhas – demorada, detalhada, cuidada – os anos batalhaste por um produto final como o Great Yarmouth por exemplo… O que é que ainda hoje te move a continuar a batalhar e a fazer projetos desse modo, a recusar simplificar?
Nunca paro. Não existe espaço para isso, para o bem ou para o mal. Não sei se é uma vantagem ou uma desvantagem, mas as coisas processam-se no sentido de eu saber logo o que vou fazer a seguir. Apesar de tudo, no teatro tento fazer só uma peça por ano, para ter esse tempo de me dedicar ao processo. Quatro meses num processo para mim é fundamental, porque é o processo que tem que dar origem ao objeto em si. Por exemplo, se tens um processo de dois meses, tens que saber exatamente onde queres chegar antes de começar e isso não me interessa como artista.

Mas é um privilégio. Hoje em dia é muito difícil ter a possibilidade de trabalhar assim.
Sim, mas pagas um preço alto também. Por exemplo, a nossa companhia, porque tem estas características, nunca teve um apoio da Direcção Geral das Artes bianual ou seja, temos um acordo pontual. Mas como tudo está formatado para teres que apresentar três, quatro projetos por ano…

Antes deles estarem sequer pensados… (risos)
O que acontece é que há um carinho muito grande do público, dos programadores e dos teatros pelo nosso trabalho e uma relação que se foi estabelecendo ao longo dos anos que permite que continuemos a trabalhar sobre este processo. Não sei se é um privilégio. Privilégio é poder estar com aquelas pessoas durante aquele tempo. Não ter que estar centrado só num resultado e poder falhar muitas vezes e recomeçar durante o ensaio de um espetáculo.

Como é que lidas com o erro e a falha?
É fundamental. Um artista que não trabalha sobre a falha e o erro não me interessa muito. Posso trabalhar durante quatro ou seis meses (este foi mais curto – três meses) e só começar a ensaiar o espetáculo mesmo duas semanas antes.

Antes da estreia?
Sim. Mas é sempre assim. Vais desenvolvendo material, trabalhando improvisações e textos. É um processo, vais escrevendo.

Envolves quem lá está também?
Sim, contribuem no sentido em que [o texto surge] a partir das improvisações que criamos em conjunto e do que tu vais propondo e da forma como o fazes. Nessa altura, já temos entrevistas longas por trás para conhecer o elenco. Os atores estiveram muito presentes neste caso. Tento envolver ao máximo todas as pessoas no processo.

Cria-se ali uma espécie de ambiente familiar que facilita o foco no resultado positivo…
É um ambiente de criação. Eu não diria familiar.

Familiar no sentido de unidade, coesão.
Sim e no sentido de um gosto pelo risco, de saber que podes estar a trabalhar numa cena durante muito tempo e ela não tem necessariamente que estar no espetáculo final.

E eles [o elenco adolescente] lidaram bem com isso?
Muito bem. Isso está definido desde o início. A própria equipa depois também lida bem com a frustração porque percebe que faz parte do jogo. Há essa perceção de ser um organismo. Por exemplo, no Selvagem, entre o ensaio geral e a estreia, cortei 20 minutos. Estava muito longo. Há uma adaptação ao espaço cénico na última semana em que tu estás em palco que modifica o objeto artístico. No discurso final deste espetáculo, da Manuela Canais Rocha, ela conta como decidiu estudar Geografia para criar uma imagem visual do mundo que ela não conhecia e eu achei isso lindo. Essencialmente, ela diz que a Geografia que ela dá que não é a geografia do programa. É a geografia do Portugal democrático, que lhe permitiu sair daquela clausura. Essa cena nasceu dois dias antes da estreia. Voltando à pergunta inicial, falo muito com os outros criadores sobre a forma como organizam o tempo, que tipo de estruturas é que têm para permitir a maior liberdade possível na criação. Portanto à tua pergunta se eu sei sempre o que vou fazer: eu nunca sei o que vou fazer, mas sei que tenho alguma coisa para fazer nesse sentido [do objecto final].
Durante o processo criativo, há momentos de revelação que mudam por completo a tua forma de olhar para o sítio de partida. Acontece duas ou três vezes durante cada processo e modifica o objecto. É o que se chama uma ideia, porque é algo que tem um motor.


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