A grande literatura contamina a nossa vida, muda as nossas palavras, vive através de nós. Foi o que me aconteceu ao ler O caderno proibido, de Alba de Céspedes.
Tudo começa num domingo em Roma, nos anos 50. Valeria Cossati vai comprar cigarros para o marido à tabacaria e acaba por trazer um caderno preto em segredo, porque aos domingos só se podia vender tabaco. “Preciso de um”, diz ao vendedor, para o convencer a aceitar a transgressão – “preciso mesmo de um” (p. 10). Por mais de duas semanas, mantém o caderno escondido em casa. Não temia a polícia, mas a própria família. O que diriam o marido ou os filhos se soubessem que guardava um caderno? Passa os dias a trocá-lo de lugar, a escondê-lo, acabando por perceber que não tem um lugar só seu na sua casa. Na verdade, não tem um lugar só seu na sua vida. Esta presença oculta ocupa todo o espaço, transformando-o.
“A culpa é, mais uma vez, deste caderno. (…) Numa família, temos de fingir nunca nos darmos conta do que acontece, ou, pelo menos, não nos interrogarmos acerca do seu significado” (pp. 24-25).
Assim, o que poderia ser o diário de uma mãe de 43 anos com dois filhos universitários, obrigada a trabalhar num escritório para ajudar nas despesas da casa, retrato tranquilo de uma família italiana de classe média do pós-guerra empobrecida, incapaz de viver à altura das expectativas de um estatuto social e poder económico entretanto perdidos, transforma-se num lugar de (des)encontro, subversivo e inconformado – “este caderno, com as suas páginas brancas, atrai-me e ao mesmo tempo assusta-me, como a rua” (p. 69). Como em Duras, a narradora cai num abismo – “Achar‐se num buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita nos pode salvar” (Escrever, Marguerite Duras). Só o caderno proibido a pode resgatar de si própria; só nele se consegue encontrar. “Então, apoderou-se de mim um desejo irrefreável de o possuir, esperava que nele pudesse esgotar sem culpa o meu desejo secreto de ainda ser Valeria.” (p. 287). O caderno proibido instala-se também na minha vida. Pego nele sempre que posso, sempre em fuga, obrigada pelo estilo. Leio depressa, para não ser descoberta por Michele, o marido, ou pelos filhos, Mirella ou Riccardo. Temo a queda e a destruição. A escrita desacomoda, retira a paz, traz a solidão.
“Diante destas páginas, tenho medo: todos os meus sentimentos, assim perscrutados, apodrecem, tornam-se veneno, e tenho a consciência de me tornar ré quanto mais tento ser juíza. Tenho de destruir o caderno, destruir o diabo que nele se esconde entre cada página, como entre as horas da vida.” (p. 293)
Num registo de intimidade, doméstico, pela escrita, vão caindo as pesadas paredes das instituições – casamento, família, patriarcado, igreja – e os seus papéis – mãe, esposa, filha, avó…
Filha do embaixador de Cuba em Itália, Alba de Céspedes (1911-1997), escritora, poeta e dramaturga, chegou a ser presa pelas suas atividades antifascistas, durante a ditadura. Em 1944, fundou a revista Mercurio, uma publicação dedicada à política, arte e ciência, com colaborações de Natalia Ginzburg, Elsa Morante ou Alberto Moravia. A reedição de O caderno proibido em Portugal pela Alfaguara traz ao público nacional o prazer da descoberta de uma grande autora e da luta pela liberdade de toda uma geração. Nele encontramos a urgência e a inquietação que só a grande escrita sabe tecer… “porque todas as mulheres [pessoas] escondem um caderno negro, proibido. E todas têm de o destruir.” (p. 293)
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